O legado da era dos jornaleiros que gritavam as manchetes nas esquinas – por Carlos Wagner
Carrego vários orgulhos na minha carreira de repórter. Um deles é muito especial e o guardo lá no fundo do coração. E lembro sempre que tenho dificuldade na apuração de uma reportagem. É o de ter iniciado na lida convivendo com o pessoal que atava os pacotes de jornais nas esteiras das máquinas rotativas e os que entregavam os exemplares nas bancas de revista (locais de venda) e para os jornaleiros, como eram chamados os jovens que no raiar do dia gritavam as manchetes pelas esquinas das cidades. Na época, década de 70, essas tarefas estavam a cargo do então Departamento de Circulação e a receita dos jornais dependia da venda avulsa dos exemplares. Lembro-me das vezes que os donos das bancas pegavam o jornal, liam a manchete e diziam: “Não vende nem para a mãe de quem fez o título”. Tudo mudou com a estruturação e a modernização dos departamentos de assinaturas. Logo que começou a ganhar corpo a venda por assinatura, entre o pessoal que trabalhava na circulação as conversas misturavam mágoa e ressentimento pelo fim de uma era no jornalismo. Gravei na mente um comentário que ouvi: “Agora os jornais já nascem vendidos”. Ou seja. Não era mais necessário ter uma boa manchete para brigar pelo leitor.
Fui testemunha desta história. Trabalhava na circulação do Coojornal, um jornal mensal da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre que fazia parte da imprensa alternativa, como eram chamadas as publicações que faziam oposição aos militares que tomaram o governo do país com o golpe de estado de 1964. Comecei a trabalhar em redação em 1979, e o que aprendi na circulação influenciou muito o meu perfil de repórter. Sempre que sento para escrever uma matéria começo me perguntando: o que o leitor quer saber sobre o assunto? Contei essa história para puxar um assunto que considero deve ser melhor esmiuçado pelos jornalistas, que são as notícias colocadas à disposição dos leitores gratuitamente nos sites dos jornais e os conteúdos que só podem ser acessados pelos assinantes. Iniciaremos a conversa com uma imagem que simboliza a era da venda avulsa do jornal de papel. Um pessoa com uns poucos “pilas” no bolso, como era apelidada a moeda nacional, podia comprar na rua o seu exemplar do jornaleiro. Antes de seguir em frente com a conversa vou contar uma história que me aconteceu. Na década de 60, eu era guri e morava em Encruzilhada do Sul, cidade na Serra do Sudeste, no interior gaúcho, onde a água congela nos canos no inverno. Pedi para a minha mãe, dona Loni, que comprasse um jornal. Nós éramos uma família pobre. Dias depois, ela apareceu com um jornal e me entregou. Olhei a data na capa e reclamei: “Mas é da semana passada”. Ela perguntou: “Já leu?”. Respondi: “Não”. Ela me olhou e disse: “Então é novidade pra ti.” Fiquei quieto e fui ler o jornal. De certa maneira, dona Loni estava com a razão, porque na época a circulação das notícias era lenta.
Quando as novas tecnologias da comunicação como a internet, os celulares, as TVs a cabo e toda a parafernália de redes sociais se instalaram no Brasil, já encontram organizados e funcionando a todo vapor os sistemas de assinaturas nas empresas de comunicação. Nos dias atuais, para ter acesso ao jornal digital é necessário fazer uma assinatura, como também ocorre com a TV a cabo e as inúmeras e diferentes plataformas de comunicação. Hoje uma notícia circula o mundo ao apertar um botão no teclado de um computador ou celular. Bem diferente da época que eu pedi um jornal para a dona Loni. Atualmente, as redações são abastecidas por uma enxurrada contínua de informações que chegam de todos os cantos do planeta. E as distribuem para os seus leitores, que se dividem em dois grupos: os assinantes e os não assinantes, sendo que estes últimos têm acesso somente aos chamados noticiários abertos. Qual é a diferença dos conteúdos distribuídos para os dois públicos? Não é a qualidade, mas a quantidade. Nos noticiários gratuitos há escassez de notícias. E nos disponíveis aos assinantes encontra-se uma enxurrada de repetidas notícias velhas misturadas com novas. Essa mistura é jogada na cara do leitor sem maiores explicações. Aqui há um problema que poucos leitores conhecem. Nas redações, os jornalistas trabalham para os dois tipos de leitores. E por conta das demissões em massa que aconteceram e ainda acontecem os repórteres recebem um dos mais baixos salários da história da categoria. Os que estão atualmente nas redações têm uma enorme carga de trabalho produzindo textos, fotos, vídeos e áudios. O mesmo acontece com os comentaristas políticos, econômicos e esportivos. Não tem como exigir desses profissionais uma qualidade no trabalho. Para apurar as informações o repórter precisa de tempo. E tempo é tudo que não existe mais nas redações.
A consequência da precarização do trabalho do repórter foi a facilitação do avanço das máquinas de fake news, especialmente as montadas pela extrema direita, que inundam as redes sociais e outros meios de comunicação. Para arrematar a nossa conversa. Uma situação ideal seria a que todos os leitores tivesse acesso a todos os conteúdos produzidos pelos jornalistas. A realidade econômica os dividiu entre assinantes e não assinantes. Criado uma situação que merece ser refletida pelos jornalistas. Tenho 74 anos, quatro décadas na lida de repórter, aprendi que é besteira dizer que antigamente se fazia um jornalismo de melhor qualidade que o dos dias atuais, ou que hoje é melhor que nos tempos das máquinas de escrever nas redações. Cada época tem os seus desafios a serem vencidos. E os repórteres sempre foram muito bons de briga.
PARA LER NO ORIGINAL, CLIQUE AQUI.
(*) O texto acima, reproduzido com autorização do autor, foi publicado originalmente no blog “Histórias Mal Contadas”, do jornalista Carlos Wagner.
SOBRE O AUTOR: Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela UFRGS. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 74 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.
Twitter tem um negocio chamado ‘community notes’. A comunidade de usuarios pode acrescentar contexto ao que é escrito, uma checagem de fatos. Muitos veiculos abandonaram a plataforma porque estavam passando vergonha. Jornalistas provando que fake news não é só coisa dos outros. E o resto? O resto é mimimi, uma biografia que interessa a muito poucos.