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KISS. Familiares de vítimas do incêndio buscam responsabilização de agentes públicos pela tragédia

Memoriais foram apresentados à Comissão Interamericana de Direitos Humanos

Antiga fachada da Boate Kiss, em Santa Maria. Foto Tomaz Silva / Agência Brasil / Arquivo

Por Bettina Gehm / Sul21

“Às vezes, eu falo que eu tenho vergonha de morar no Brasil, um país tão desprovido de justiça, onde aqueles que têm dinheiro matam e não são responsabilizados”. A frase é de Flávio Silva, pai de Andrielle Righi da Silva, uma das 242 vítimas do incêndio na Boate Kiss. Ele preside a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) e esteve presente, durante a tarde de quarta-feira (29), na apresentação dos memoriais que a representação das vítimas enviou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pedindo a responsabilização de agentes públicos pela tragédia e pela violação dos direitos dos familiares das vítimas.

Até o momento, nenhum agente público foi responsabilizado pelo incêndio que completou 12 anos na última segunda-feira (27). Estão presos apenas quatro réus: os sócios da boate Kiss, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffman; e os músicos Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos, que se apresentavam na boate durante a noite em que ocorreu a tragédia. A AVTSM quer que sejam penalizados, também, o Ministério Público (MP), o Corpo de Bombeiros e a Prefeitura de Santa Maria.

Advogada que representa a AVTSM, Tâmara Biolo Soares explicou que o réu nessa ação é a União. “Santa Maria não tem personalidade jurídica internacional. Quem tem é a União, que vai ser chamada a cumprir as medidas que a CIDH determinar. A comissão vai dizer [por exemplo]: investigue os responsáveis do município de Santa Maria. O Ministério Público Federal já tem um departamento que faz exatamente isso: estuda e executa recomendações de órgãos internacionais”, afirmou.

A denúncia contra os agentes públicos foi apresentada à CIDH ainda em 2017. A Comissão notificou o Estado brasileiro, que em 2021 respondeu apresentando objeções ao caso. A CIDH, no entanto, decidiu pela admissibilidade do caso e notificou a associação dos familiares das vítimas no final de 2024. “Agora, foi aberta a etapa sobre o mérito do caso. A Comissão vai decidir se houve violação de direitos humanos pelo Estado”, disse a advogada.

“A gente espera que essa ação nos remeta a possibilidades de fazer grandes mudanças, inclusive na prevenção contra incêndios. Cada vez que acontece uma tragédia e morrem pessoas, a nossa ferida é reaberta. É um misto de amor e saudade da Andrielle e uma revolta com tudo o que acontece no Brasil”, desabafou Flávio.

Direitos humanos violados
Os familiares das vítimas consideram que servidores municipais de Santa Maria, promotores do MP e bombeiros que atuaram no incêndio tenham violado direitos humanos das vítimas e de suas famílias.

Tâmara alegou que tanto a Prefeitura de Santa Maria quanto o MP tinham pleno conhecimento das condições em que se encontrava a casa de festas. A boate operou por vários meses sem alvará, sem Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndios (PPCI) e sem alvará sanitário. No dia do incêndio, os bombeiros não tinham equipamentos adequados para o combate ao fogo e permitiram que civis entrassem na boate.

A Prefeitura teria, ainda, culpabilizado as vítimas pela tragédia: “Em documentos jurídicos, logo no início das investigações, a Procuradoria-Geral do Município escreve que a culpa foi dos próprios jovens. O prefeito não recebeu a Associação e a acusava de fazer uso político da tragédia, instigando na cidade um sentimento contrário às famílias”.

O Ministério Público, por sua vez, chegou a processar o pai de uma das vítimas por calúnia e difamação. Paulo Tadeu Nunes de Carvalho, que já presidiu a AVTSM, publicou um artigo de opinião no jornal local expressando indignação após o MP ter arquivado processos de improbidade administrativa sobre o caso. Ele foi absolvido do processo movido pelo MP.

Depois da tragédia, a Prefeitura não investigou nem puniu os servidores que deixaram de fiscalizar e autuar os donos da boate. Os bombeiros foram julgados pela Justiça Militar, procedimento que não tem validade em crimes relacionados a civis e nem para fins de tribunais internacionais.

“O MP tomou ações que violam o direito de acesso à justiça”, disse Tâmara. “Houve o arquivamento dos inquéritos contra todos os agentes públicos e não foi investigada a conduta dos próprios promotores”.

Além disso, até hoje, ninguém recebeu qualquer indenização a respeito do processo. O MP, além de não interpor ações civis públicas a respeito do caso, questionou a legitimidade da Defensoria Pública, que interpôs. “Em doze anos, essa ação – que não é penal – ainda não teve sentença de primeiro grau”, ressaltou a advogada.

A atuação do MP no processo penal é outro ponto levantado pela Associação à CIDH. Até 2020, antes do julgamento dos quatro réus que estão presos, ainda atuavam no processo os mesmos promotores que processaram os pais das vítimas.

A representação das famílias aponta que houve, ainda, deslegitimação da luta por justiça através de uma campanha midiática na época do júri. O pai de uma das vítimas chegou a ser convocado como testemunha pela defesa dos responsáveis pela morte de sua filha.

“A defesa utilizou da luta pela responsabilização dos agentes públicos para eximir os réus de responsabilidade. Os réus que colocaram 1200 pessoas numa boate onde só cabiam 600; que tiraram os extintores de incêndio do local por questões estéticas; que fecharam os dutos de fumaça e taparam a boate por fora, deixando somente uma porta de saída. Os quatro réus são os principais responsáveis. A busca por responsabilização dos agentes públicos não exime os réus já condenados”, pontua a advogada.

Ao todo, Tâmara contabiliza 15 leis violadas. “Não houve falhas administrativas. Houve uma ilegalidade absurda”, declarou.

A associação demanda, ainda, mudanças legislativas. “Todo o marco normativo está dentro de uma lógica do direito urbanístico. Não é a vida ou a integridade das pessoas que está sendo pensada”, disse a advogada. No momento em que a norma é violada, não dá o remédio jurídico adequado ao bem que está sendo violado. É preciso que, ao lado do direito urbanístico, haja outras normas para garantir a vida e a segurança das pessoas”.

Possíveis sanções ao MP
Tâmara explicou que a petição à CIDH busca sanções a nível individual e institucional. No caso do MP, o objetivo é que sejam abertas investigações a respeito das condutas dos promotores que conheciam as condições da boate e nada fizeram.

Quanto às mudanças institucionais, a advogada argumenta que o MP é um órgão que parece de um déficit democrático. “Não há controle externo e social. É preciso que a gente reflita sobre isso, e que haja maiores e melhores coletividades olhando para a atuação do MP. Tem cabimento o MP processar pais de vítimas?”, questionou a advogada.

Flexibilizações na ‘Lei Kiss’
“Criaram uma ‘Lei Kiss’ logo depois da tragédia, e acabaram com ela. Tudo que tinha de mais importante foi retirado. Isso prova que o que menos importa para eles é proteger vidas. Nós fomos ofendidos brutalmente por esse desmando da Justiça”, disse Flávio, presidente da AVTSM.

O pai de uma das vítimas refere-se às flexibilizações na lei sobre medidas de prevenção e combate a incêndio, criada em função do ocorrido em Santa Maria. A principal mudança, acatada pelo Piratini após pedido da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), é a criação do Certificado de Licenciamento do Corpo de Bombeiros de forma online para empreendimentos de baixo e médio risco de incêndio, de até 200 metros quadrados. Acima dessa medida, até 750 metros quadrados, deve ser feito o plano simplificado de Plano de Proteção Contra Incêndio (PPCI). Esses planos também poderão ser feitos via internet e podem ser renovados por dois a cinco anos.

Além disso, antes, havia a necessidade de contratar um engenheiro ou arquiteto para a realização da Anotação de Responsabilidade Técnica (ART). Agora, caso não haja alterações no empreendimento, na renovação dos planos simplificados não precisará haver a anotação.

Para o vice-presidente do Sindicato dos Engenheiros (Senge), João Leal Vivian, a flexibilização ataca o exercício da engenharia. “Existem hoje, no Rio Grande do Sul, milhares de alvarás sem profissional habilitado. A gente vê incêndio acontecendo essa semana num mercado em Guaíba; na Delegacia de Polícia; na Pousada Garoa”, disse. “O mínimo que precisamos fazer é uma reflexão e tentar entender o que está acontecendo. Grande parte dessa cadeia produtiva da prevenção contra incêndios não está nas mãos do profissional habilitado”.

Para ler a reportagem original, no site do Sul21, clique aqui.

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