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Por Pedro Pereira
A primeira fase do Campeonato Gaúcho Série A chega ao fim neste sábado (15) e, neste ano, o Estadual teve uma novidade: todas as partidas contam com a presença do Árbitro Assistente de Vídeo, o VAR. As opiniões até aqui são controversas em relação ao uso da ferramenta, pois, enquanto para alguns ela vem facilitando o trabalho dos juízes, para outros ela está apenas complicando.
O que é possível analisar: a arbitragem, por si só, é um dos ofícios mais complexos de exercer uma vez que, para algum dos lados de uma história, a decisão nunca será a correta e as críticas são intermináveis. Porém, a situação já esteve complicada – e a gaúcha Ivani de Gregori, natural de São João de Polêsine, é uma das provas disso.
Aposentada após uma denúncia que “não pegou bem” para os envolvidos, Ivani se formou árbitra pela Associação Santamariense de Árbitros de Futebol (ASAF) na década de 1980. Ela é reconhecida por ser a primeira mulher do Rio Grande do Sul a ter integrado o quadro da FIFA, a maior entidade administrativa do universo do futebol ao redor do mundo – além de, claro, ter combatido o machismo na modalidade.
Origem nas quatro linhas
Ivani nasceu no ano de 1964 e viveu até o início da idade adulta em sua cidade natal e municípios vizinhos. Ela conta que, quando era criança, jogava futebol com os irmãos, mas eles não eram tão vidrados no esporte quanto ela. Aos fins de semana, gostava de ir em um clube e “se meter” no jogo dos meninos, pois aparecia para participar mesmo sem ser convidada. “O futebol tava no meu sangue, era a minha paixão. Desde criança, eu lembro que onde eu ia eu jogava futebol, e eu até jogava bem”, relembrou.
A polesinense poderia ter toda a habilidade necessária para estar lado a lado com os guris, mas não era o suficiente para que ela pudesse seguir a carreira de atleta. Mesmo que quanto mais ela crescesse mas a vontade de atuar na modalidade aumentasse, os pais não apoiavam a ideia da jovem, que precisava sair escondida para poder jogar futebol. Foi após uma dessas aventuras, inclusive, que Ivani “caiu na real” que a possibilidade surgiria apenas na vida adulta.
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“Para meu pai e minha mãe, ‘Deus me livre’ que nós (Ivani e os irmãos) jogássemos futebol. Teve um fim de semana que nós dissemos que íamos para uma festa, mas colocamos uma bermuda dentro do casaco e combinamos de jogar em uma Igreja que tinha no meio do caminho, em Santo Ângelo. Nós jogamos e fomos para a festa, mas depois nossos pais nos cobraram: ‘vocês não estavam na tal da festa, foram para outro lugar’. Eles não aceitavam de forma alguma. Aí eu pensei: ‘bom, já que não tem como jogar futebol aqui, porque o pai e a mãe não querem, porque não tem time, não tem estrutura, quando eu for para a faculdade eu vou jogar futebol”, confessou.
A polesinense, então, ingressou no curso de Educação Física da UFSM. Porém, como não começou a estudar na Universidade logo após terminar a escola, ficou um ano parada e acabou perdendo o interesse em jogar futebol – até que, repentinamente, uma outra possibilidade de atuar nos gramados surgiu no Campus de Santa Maria, por meio da ASAF.
“Do nada, um dia, chegaram umas colegas minhas e disseram: ‘Ivani, você não tá com vontade de fazer curso de árbitro de futebol? A gente tá fazendo e ontem já atuamos em um jogo. Precisa só levar documentação e fazer a inscrição’. Eu pensei: ‘ah, já que eu gosto tanto de futebol, vou fazer minha inscrição”, recordou a gaúcha.
Dito e feito. A então acadêmica da UFSM completou a inscrição e, dias depois, foi a Nova Palma para ter uma primeira experiência em uma partida de futebol – na época, como bandeirinha. A vivência foi o suficiente para que, após o jogo, entrasse em um embate contra seus pais e saísse vitoriosa da discussão.
“Quando saí do jogo, fui para casa e a minha mãe estava apavorada. ‘Meu Deus do céu, tu quer me matar? Onde já se viu, tu apitando no campo de futebol. Isso é coisa de homem’. Para a minha mãe, era o fim do mundo. Mas imagina, isso era quarenta anos atrás. Eu falei: ‘mãe, agora eu estou fazendo faculdade e vou continuar na arbitragem. Eu gosto disso’. Ela ficou decepcionada, mas tudo bem”, recordou Ivani.
Nunca foi fácil
Depois de um tempo, os pais da polesinense começaram a aceitar a profissão e o cenário começou a ficar mais tranquilo. Entretanto, surgiu outra complicação, mas desta vez fora de casa e com as pessoas que mais deveriam apoiar a jovem: “a Federação Gaúcha não aceitava, em hipótese alguma, mulher na arbitragem. Tanto que teve um jogo no campo do Inter de Santa Maria em que eu estava de bandeirinha, chegou o vice-presidente da Federação Gaúcha e disse que se o Internacional deixasse entrar árbitra mulher no campo, o estádio seria fechado”.
Com a proibição, Ivani seguiu na ativa apitando em algumas partidas amadoras. Ela se formou em Educação Física na UFSM em 1987, fez concursos públicos – tendo começado, inclusive, a trabalhar no Banrisul da cidade de Dois Irmãos -, e se afastou um pouco do futebol. Contudo, em 1992, a polesinense recebeu uma carta de um colega da época que fez a inscrição para se tornar árbitra afirmando que a Confederação Brasileirao de Futebol (CBF) estava em busca de árbitras mulheres.
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“Então, eu fui para a Federação Gaúcha e fiz minha inscrição para a CBF, porque até então a Federação Gaúcha não aceitava mulheres, não queria nos reconhecer. Feita a inscrição, não demorou muito e já fomos para o Campeonato Brasileiro Feminino de Futebol em Arceburgo, Minas Gerais”.
Com a chegada da CBF, tudo mudou na carreira de Ivani. A partir disso, ela começou a participar todos os anos do Campeonato Brasileiro Feminino. Vale destacar que, na época, a competição acontecia inteiramente em cerca de duas semanas, em uma cidade só. Não era como os dias de hoje, em que são realizadas mais disputas, durante todo o ano. Na visão da gaúcha, embora o machismo fosse óbvio, no papel de árbitra não era tão diferente em relação aos homens. Porém, uma história em específico a impactou e, segundo ela mesma, foi ali que ela sentiu o machismo. Bastou aparecer no estádio, em um município da Região Central do Estado, que os insultos começaram.
“Eu entrei no campo para apitar e, até então, tava tudo tranquilo. Era um clássico do local, mas eu não sabia na hora. Tinha um jogador que não aceitava e já começou o jogo bem agressivo. Não tinha nem 20 minutos de jogo, ele deu uma entrada forte uma primeira vez e eu dei cartão amarelo. Ele fez de novo, eu expulsei ele e ele veio para cima de mim. Eu consegui me defender, empurrei outro jogador para cima dele e tiraram ele de campo. Toquei o jogo até o fim, mas me marcou na época. Eu não me assustei na hora, mas depois fiquei assustada pelo que aconteceu. Foi ali que eu senti bastante o machismo”, relatou a polesinense.
A coragem valeu a pena
Ivani passou por cima de situações como essa e apitou inúmeros jogos, tendo assistido de perto a performances de diversos craques do futebol brasileiro, como Romário e Edmundo. Entretanto, em 1995, quando chegou o convite para integrar o quadro FIFA foi surpreendente. “Eu fui pega de surpresa naquela época. O Campeonato Brasileiro Feminino era realizado apenas uma vez por ano, não tinha aquela perspectiva de evolução na arbitragem feminina. A gente sabia que na Europa, na América do Norte, tinham excelentes times femininos, mas no Brasil e no resto da América do Sul, não era assim. Não tinha esse desenvolvimento e esse apoio que têm hoje”, declarou.
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A polesinense seguiu atuando até 2000 quando, por conta de uma atitude corajosa, escondida por muitos anos à comunidade, a fez sair do universo do futebol. “Eu hoje não acompanho muito futebol, porque eu saí da arbitragem depois de denunciar a corrupção que tinha no sindicato dos árbitros. Eu denunciei desvio de dinheiro, vi muito desaforo. Isso acabou com a minha carreira. Hoje eu conto, mas antes eu tinha vergonha de contar. Eu não me arrependo. A honestidade vem em primeiro lugar para mim. Porém, claro que aquilo me doeu”, desabafou.
Ivani, após começar a ser barrada, casou e teve duas filhas. Uma mora no Rio de Janeiro e é modelo. Já a outra cursa Direito e segue no Rio Grande do Sul. A ex-árbitra, como não gosta de um descanso, hoje atua no corpo de bombeiros em Farroupilha, na Serra Gaúcha. “Eu sempre gostei dessa parte de voluntariado. Meu falecido marido também era dessa área, nós sempre gostamos de ajudar as pessoas. Então, depois que ele morreu, eu assumi a presidência da equipe de bombeiros voluntários, que era o posto dele”.
Embora mais de duas décadas separem 2025 do ano em que a gaúcha“aposentou o apito”, uma coisa é certa: não foi possível apagar Ivani nem sua importância para o futebol feminino da história. Em Santa Maria mesmo, os efeitos da gaúcha são sentidos até hoje. “Apesar de tudo que aconteceu, era maravilhoso. Eu tenho boas lembranças, mesmo com a dificuldade e de todo o machismo. A gente superou todas as barreiras”, afirmou.
Ivani considera o Coração do Rio Grande uma cidade privilegiada. Nomes que integram o quadro da FIFA atualmente como Anderson Daronco, Rafael Klein e Maíra Mastella ou nasceram no município ou se formaram na UFSM, mas, igualmente, iniciaram as trajetórias em território santa-mariense. Ainda há Andressa Hartmann, que vive uma ascensão na arbitragem do Estado. Se nomes como estes seguem subindo degraus na profissão, é essencial entender que tudo começou com Ivani de Gregori, quando o cenário para mulheres era apenas mato.
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