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O Conclave e o espelho do mundo político atual – por Amarildo Luiz Trevisan

Filme que, para além da realidade da Igreja, é “metáfora do cenário político”

O que um filme sobre a eleição de um novo papa pode revelar sobre a política contemporânea?

Em um momento de questionamento da legitimidade das eleições em diversos países, incluindo o Brasil, “Conclave”, um filme que está em cartaz atualmente nos cinemas, expõe um universo que ainda não se rendeu às inovações tecnológicas no processo eleitoral. A Igreja Católica, uma instituição com mais de 1,3 bilhão de seguidores, conduz a escolha de seu líder por meio de um rito solene, repleto de tradições e simbolismos. Um grupo de 108 cardeais se reúne a portas fechadas para eleger o novo papa, exigindo uma maioria qualificada de dois terços mais um para ocupar o trono vago da Santa Sé.

Nesse cenário, o cardeal Lawrence, Decano do Colégio Cardinalício, surge como um facilitador do processo, buscando equilibrar interesses e tensões. Desde o início, ele propõe um critério incomum para a escolha: um papa que tenha menos certezas, pois são justamente as certezas inabaláveis que, segundo ele, representam a verdadeira inimiga da fé. Ele defende a eleição de um líder humano, capaz de errar e pedir perdão, em vez de um soberano revestido de infalibilidade dogmática.

Dirigido pelo premiado cineasta alemão Edward Berger, conhecido pelo impactante “Nada de Novo no Front” (2022), “Conclave” é uma adaptação do livro homônimo de Robert Harris. A obra revela as profundas inquietações e dilemas da fé cristã: a legitimidade da Igreja como guardiã da mensagem de Cristo, o celibato clerical, a luta pelo poder e as tentações que Cristo enfrentou no deserto, agora manifestas em um contexto contemporâneo.

O filme é cheio de simbolismos, como as tartarugas que circulam no pátio do Vaticano, mas que, fora d’água, são lentas e parecem perdidas, como a mostrar o que acontece quando a fé se afasta da água que purifica. Tanto que em uma cena Lawrence pega uma das tartarugas que anda fora da bica de água e a devolve para aquele local. Esse detalhe reforça a mensagem central da obra: a necessidade de manter a fé enraizada em sua essência, sem se perder nas disputas pelo poder terreno.

No coração dessa disputa, conservadores e liberais travam uma batalha feroz, refletindo as polarizações da política global. De um lado, figuras como o cardeal Tedesco acusam os progressistas de relativizar a doutrina e promover a decadência da fé nos últimos 50 anos. Do outro, os reformistas temem o retrocesso caso o poder recaia sobre os tradicionalistas. Entretanto, em meio a essa guerra de narrativas, uma reviravolta inesperada revela que a disputa não deve ser entre lados opostos, mas entre valores essenciais: amor à humanidade ou apego ao poder.

A trama desnuda a mesquinharia que permeia a disputa pelo comando da Igreja, evidenciando que, mais do que defender ideais, muitos cardeais buscam cargos, status e controle. Essa dinâmica política se desenrola sob o olhar silencioso dos anjos e demônios pintados nas paredes da Capela Sistina, que parecem testemunhar os bastidores da eleição pontifícia.

“Conclave” questiona a fé baseada em certezas absolutas, demonstrando que a dúvida, longe de ser uma inimiga da espiritualidade, pode ser o caminho para uma relação mais autêntica com a transcendência. O filme transcende a realidade da Igreja e se torna uma metáfora do cenário político contemporâneo, onde a polarização sufoca o diálogo e a busca por poder eclipsa a busca pelo bem comum.

Assim, “Conclave” não se limita a refletir a realidade, mas a transfigura, revelando sua fragilidade e potencial de renovação. A história nos convida a abandonar os caminhos já trilhados e a abrir espaço para o inesperado, para um futuro que não esteja aprisionado pelas certezas dogmáticas ou pelas batalhas de poder. A arte, nesse sentido, cumpre sua função maior: não apenas espelhar o real, mas reformulá-lo, ou mais ainda, transcendê-lo, tornando visíveis suas contradições e esperanças.

(*) Amarildo Luiz Trevisan é professor do curso de Ciências da Religião e do PPGE/UFSM.

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10 Comentários

  1. ‘A arte, nesse sentido, cumpre sua função maior: […]’. Confroversias sobre o ‘cinema arte’. Que quase ninguém assiste. Como os MASMs da vida, que só recebe praticamente excursão de escola. Mas se fizessem uma mostra temporaria da Mona Lisa só naquele local por uma semana a fila começaria no Skato e terminaria no predio da reitoria do Campus.

  2. ‘A história nos convida a abandonar os caminhos já trilhados e a abrir espaço para o inesperado, para um futuro que não esteja aprisionado pelas certezas dogmáticas ou pelas batalhas de poder’. Mais cantilena vermelha disfarçada de utopia.

  3. ‘[…] a busca pelo bem comum.’ Quem define o que é ‘bem comum’? ‘[…] conservadores e liberais travam uma batalha feroz […]’. Os vermelhos se apropriaram da palavra ‘liberal’. Bom enfatizar.

  4. ‘A trama desnuda a mesquinharia que permeia a disputa pelo comando da Igreja […]’. Conforme imaginado por um escritor na Inglaterra, obvio. Porque Conclave, a principio, na realidade é resguardado em segredo.

  5. ‘[…] a disputa não deve ser entre lados opostos, mas entre valores essenciais: amor à humanidade ou apego ao poder’. Sim, os conservadores ‘malvadões’ são apegados ao poder e os ‘progressistas/reformistas’ são os que ‘amam a humanidade’. Um pirulito e um balão para cada um.

  6. ‘[…] como o cardeal Tedesco acusam os progressistas de relativizar a doutrina e promover a decadência da fé nos últimos 50 anos. Do outro, os reformistas temem o retrocesso caso o poder recaia sobre os tradicionalistas.’ Ou seja, o retrocesso da decadencia é uma coisa ruim? Os conservadores e os ‘revolucionarios’.

  7. ‘O filme é cheio de simbolismos,[…]’. Ou seja, masturbações mentais para ‘iniciados’ que não entendem o tempo que vivem. Um dos motivos pelos quais o cinema tupiniquim nunca foi adiante. Alas, hoje morreu Caca Diegues na obscuridade de costume.

  8. ‘A obra revela as profundas inquietações e dilemas da fé cristã:[…]’. Segundo Robert Harris e Edward Berger. Ou seja, opinião. Compartilhada pelos vermelhos, porque toda propaganda contra a Igreja Catolica, que tem 2 mil anos bom lembrar, é bem vinda.

  9. Por partes como diria Elize Matsunaga. Uma Universidade Federal, deixando de lado os claros objetivos ideologicos, oferecendo um curso, ainda que a distancia, de ‘ciencias da religião’ é no minimo um oximoro.

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