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Das liberdades – por Orlando Fonseca

“A defesa da liberdade individual deve ter a Democracia como ponto de corte”

O refrão “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”, por certo, enseja a escuta de duas melodias separadas por décadas de história cultural. Da mesma forma, o conceito de “liberdade”, hoje em dia, carrega concepções distintas entre pensamentos sobre a prática política. O verso acima se tornou uma expressão muito popular, associada ao Carnaval carioca, por ser parte do samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense de 1989.

Entretanto, está no Hino à Proclamação da República, com letra de Medeiros de Albuquerque e música de Leopoldo Miguez, cujo contexto é o da derrubada da monarquia e o início da república no Brasil, em 1890 (um século antes do samba-enredo). Há um detalhe da letra do Hino ao qual gostaria de chamar atenção, mais adiante, a fim de enfatizar que a nossa noção política é feita de apagamentos históricos. Com isso, quase sempre se tropeça na argumentação sem base filosófica ou histórica. É o que penso quando ouço, hoje em dia, a defesa da “liberdade”, seja de agir ou de se expressar.

A noção de liberdade no convívio social, como a conhecemos hoje, nasce com o surgimento da sociedade burguesa, entre os séculos 18 e 19. Naquele tempo, lutava-se contra o despotismo, a superação de uma concepção de mundo oriunda de séculos do regime feudal e do obscurantismo da supremacia da religião sobre a ciência e a cultura em geral. Ao mesmo tempo em que se forma a concepção de indivíduo, do eu racional e do livre arbítrio, tem início a criação da sociedade moderna.

Ainda marcados pelo sentido da fé cristã, os pensadores iluministas produziram tratados sobre ciência e razão, os quais levaram à maior revolução na forma de pensar e viver no espaço urbano, o qual começava a se constituir com a ascensão da república e da democracia. Conceito, aliás, que veio do mundo grego, mas em uma sociedade escravocrata, em que o direito ao voto (portanto à cidadania) era legado apenas aos homens adultos e ricos.

Em meio às disputas culturais e mesmo bélicas da Revolução Francesa, o pensamento político é pendular, ora pendendo para o idealismo, ora para a realidade histórica. Não é difícil perceber isso, quando se olha o que a arte nos traz: o Romantismo e o Realismo. É uma dicotomia que se estende no tempo, entre o pensamento platônico do “mundo das ideias” (a beleza natural e o homem bom e perfeito) e o mundo real e sua materialidade.

Se por um lado o racionalismo levou às revoluções industriais, portanto a um mundo novo de progresso e riqueza, por outro, formou contingentes humanos de trabalhadores vivendo em condições miseráveis. Isso levou pensadores engajados a formularem a defesa dos seus direitos. Foi com base nesses postulados que se formou o pensamento da liberdade econômica, e de direitos universais do ser humano.

Por isso tudo, no contexto do embate entre o STF, tentando regulamentar as redes sociais e as Big Techs, me espanta que os defensores de uma nova “liberdade” não observem as contradições em suas argumentações. Por exemplo, pra não me estender, um deputado defendendo Trump ao proibir as universidades de admitir estudantes estrangeiros, com uma fala tão rasteira que deveria significar a rejeição imediata: “um comunistinha de meia-tigela critica o governo americano nas redes e depois quer ir para lá estudar”.

Não percebe a contradição na defesa de liberdade de expressão? Só é livre para se expressar quem fale o que eles querem ouvir? Como algumas paródias por aqui, Trump é um déspota negacionista – a pior espécie de governante que a civilização legou – os revolucionários franceses se contrapuseram a déspotas esclarecidos, que, mesmo assim, não escaparam da forca ou da guilhotina. Mas isso já é outra história, execrável, por certo.

Estou convencido de que, em um estado republicano, a defesa da liberdade individual deve ter a Democracia como ponto de corte. Qualquer ato que atente contra a sua estabilidade deve ser rechaçado nos limites do marco legal. Como me referi acima, no Hino à República, os versos: “Nós nem cremos que escravos outrora/ Tenha havido em tão nobre País…” indicam que a tendência ao apagamento histórico é antiga entre nós.

No entanto, devemos sempre nos lembrar que em um período de exceção, como a ditadura pós golpe de 64, a primeira coisa a ser suprimida é a liberdade de expressão. Muitos dos brasileiros pagaram com a vida na defesa do direito à livre opção política.

A redemocratização teve um custo muito alto para que se apaguem os esforços no sentido de a constituir, manter e fortalecer. De modo que se deve tratar com muito cuidado a liberdade que temos, para que num ambiente saudável convivam as diferenças na vida republicana. 

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela “Da noite para o dia”.

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11 Comentários

  1. Resumo da opera. Tirando a baboseira wikipedica não sobra muito. Vermelhos não se adaptam aos novos tempos. Querem que pessoas que não querem saber o que aconteceu semana passada prestem atenção na historia segundo a versão deles. STF no seu acordo com os vermelhos quer ‘regulamentar’, o que não é atribuição dele. A ‘vanguarda iluminista’ quer suprimir correntes politicas no pais. Para salvar a democracia não basta acabar com o devido processo legal, há que implementar a censura. Que só baterá em alguns.

  2. Herbert Marcuse. Geralmente escondido atras de Popper. Critica da Tolerancia Pura. Tolerancia Repressiva seria tolerar tudo grosso modo. Tolerancia ‘Libertadora’ é, grosso modo, tolerar tudo que é de esquerda e não tolerar todo conservadorismo e tudo que é de direita. Tolerancia ‘discriminatoria’ que visa priorizar a proteção e a liberdade de grupos marginalizados (pessoal do Alfabeto?) e oprimidos (afrodescendentes, mulheres e ‘vitimas’ ad hoc).

  3. ‘De modo que se deve tratar com muito cuidado a liberdade que temos, para que num ambiente saudável convivam as diferenças na vida republicana.’ Que ‘vida republicana’ cara-palida? Classe politica é uma casta privilegiada. Alto funcionalismo publico, até o médio, é uma casta privilegiada. Liberdade até a pagina dois.

  4. ‘ Muitos dos brasileiros pagaram com a vida na defesa do direito à livre opção política.’ Sim, Henry Ford dizia que ‘o carro poderia ter qualquer cor, desde que fosse preta’. Todos poderiam optar pela ditadura do proletariado.

  5. ‘No entanto, devemos sempre nos lembrar que em um período de exceção, como a ditadura pós golpe de 64, a primeira coisa a ser suprimida é a liberdade de expressão.’ Lei de imprensa é de 67. Famigerado AI5 é de 68.

  6. ‘Estou convencido de que, em um estado republicano, a defesa da liberdade individual deve ter a Democracia como ponto de corte.’ Com existem os que não conseguem entender, a democracia ianque é para os ianques. Simples assim. Peru de fora toma caju e vai embora.

  7. Qualquer um pode ter a opinião que quiser do Agente Laranja por aqui. Até porque é completamente irrelevante. Agora, conseguir um visto e ir para a Ianquelandia e fazer como alguns estudantes estrangeiros que organizaram manifestações é completamente diferente. Bem entendido, a negativa dos vistos tem dois aspectos, as universidades não estão ‘filtrando’ os estudantes que aceitam e, mais obvio, existe diminuição de recursos paras as universidades. Afinal alguém esta pagando a conta.

  8. Não só para liberade de expressão. Cargos na diplomacia e no STF são privativos de brasileiros natos. Alas, CF88, ‘Será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro que […] tiver cancelada sua naturalização, por sentença judicial, em virtude de fraude relacionada ao processo de naturalização ou de atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;[…]’. Atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democratico tem tido interpretação bastante ampliada ultimamente.

  9. ‘Não percebe a contradição na defesa de liberdade de expressão? Só é livre para se expressar quem fale o que eles querem ouvir?’. Falacia é ‘liberdade de expressão é igual para todos em todo lugar’. Quem tem um centesimo de neuronio sabe que não, existem fronteiras, legislações diferentes para pessoas diferentes.

  10. ‘[…] com uma fala tão rasteira que deveria significar a rejeição imediata: […]’. ‘Fala rasteira’ não é argumento, é desqualificação partindo de um juizo de valor. Logo também pode ser qualificada de ‘rasteiro’. Para o quê não necessita doutorado.

  11. ‘Por exemplo, pra não me estender, um deputado defendendo Trump ao proibir as universidades de admitir estudantes estrangeiros,[…]’. Não tenho nada a ver com argumentação de outros. Fato: existe uma guerra cultural nos EUA. Fato: universidades privadas ganham muito dinheiro publico apesar de ter fundos de investimento gigantescos. Fato: muitos estudantes admitidos tem ligações ou apoiam que, certo ou errado, são definidos como terroristas. Fato: muitas universidades, principalmente na area de humanas, só reproduzem ideologia da Escola de Frankfurt ‘atualizada’. Fato: estudantes e professores judeus perderam acesso as universidades. Fato: pessoas que não tem cidadania americana não podem se meter na politica interna. Alas, é assim em qualquer pais do mundo, certos direitos só vem com a cidadania.

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