Memórias e ameaças – por Jorge Luiz da Cunha

Em uma noite fria de um sábado do mês de junho de 1999 eu voltava de ônibus de Alegrete. Deixando pra trás dois dias de trabalho em um projeto de educação financiado pelo INCRA, tomei o ônibus às 19h30min (des)preparado para uma viagem que me deixaria em Santa Maria aí pelas duas horas das manhã de domingo. Uma viagem em que as memórias das discussões com representantes de movimentos sociais ligados à luta pela reforma agrária se misturavam com a saudade de casa, com o cansaço, ora com a esperança ora com o desespero diante de sonhos e ideais que o então já nem tão jovem professor universitário ainda guardava das lutas da juventude.

Depois de algumas horas de viagem, na parada em Manuel Viana, sentou-se ao meu lado um senhor de boa idade. Disse chamar-se Gervásio. Campeiro com certeza, denunciado pelo jeito de falar, educado a seu modo, tratou logo de puxar conversa. Perguntas mútuas sobre tempo, família, trabalho, foram facilitando a conversa que estendeu até próximo de São Vicente.

O que não consigo esquecer, da conversa, foi o relato detalhado dos anos logo após a guerra que acabou em 1945. Sobre os anos seguintes até 1948, o velho gaúcho falou-me dos combates com DDT às nuvens de gafanhotos que atacavam campos e plantações na Campanha. Os gafanhotos se foram graças aos estoques do veneno em pó vendidos a preços bem baixos, na opinião do narrador, graças à gentileza dos americanos. Claro que a referência à gentileza americana veio cheia de ironia. Seu Gervásio, logo em seguida, contou que por causa do DDT um de seus irmãos mais novos havia nascido, justamente em 1948, sem pernas.

A memória do encontro, e a história de Seu Gervásio foram reavivadas diante da notícia que li, faz alguns dias, sobre o aumento da incidência mundial de câncer entre os anos de 1990 e 2005. Houve um crescimento do número de mortes por causa desta doença em torno de 20%. O que a maioria dos pesquisadores concluiu sobre este fato é que somente cerca de 20% dos casos de câncer tem como causa importante a suscetibilidade genética. O restante dos casos, 80% deles, poderia ser atribuída a uma combinação ou interação de fatores ou condições resultantes do modo de vida e do ambiente associados à predisposição genética.

Experimentos recentes realizados por pesquisadores americanos, como Sonnenschein e Soto, entre os anos de 1995 e 2005, mostraram que o DDT, no organismo, transforma-se em DDE, um potente agente hormonal e cancerígeno. O inseticida DDT foi o primeiro produto químico artificial a ser descoberto como estrógeno sendo que, ainda em 1949, foi relatado que homens que pilotavam aviões para a aplicação deste inseticida, apresentavam baixas contagens de espermatozóides e geraram filhos com
deficiências.

Atualmente, o consumo de derivados de tabaco é a principal causa isolada, e controlável, do adoecimento por câncer. O que chama a atenção e preocupa de verdade, é o crescimento da incidência (que tem dobrado a cada 15-20 anos) de casos de diversos tipos de câncer que podem ser atribuídos a fatores ambientais ou a hábitos de vida.

Cientistas de diversas partes do mundo têm concluído que um número crescente de produtos químicos presentes no ambiente é suspeito de atuar como causas da doença. Um destas substâncias é o Bisfenol A (BPA). Presente em mamadeiras, garrafas de água mineral, selantes dentários, latas de conserva, lentes de óculos, materiais automotivos, encanamentos de água, adesivos, CDs e DVDs, impermeabilizantes, tintas, tem sido umas das substâncias químicas de maior produção mundial nos últimos anos.

Seu Gervásio! – Os gafanhotos, aqueles que comem plantações, se foram graças às nuvens de DDT  que chegavam a cobrir o sol no final dos anos 1940, em alguns lugares da Campanha gaúcha. Mas há outros, novos gafanhotos, mais silenciosos e pacienciosos! Tem-se a impressão de que lentamente nosso conhecimento aplicado à submissão das estruturas químicas da matéria se volta contra nós mesmos. Facilidades, conforto, modernidades ameaçadoras…