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De mala e cuia – Orlando Fonseca

Quando se fala em termos de desgraça, não é fácil estabelecer os parâmetros. Parece que, quando se trata de felicidade, o ideal de paraíso é um emblema pronto, que permite a qualquer ser humano com capacidade média de entendimento ficar satisfeito. O contrário, ou seja, o baixo astral, a queda, o infortúnio, não tem um limite à altura. Até mesmo o inferno, que já teve seus dias, digamos, quentes, no temor generalizado da Idade Média, já não tem mais a força significativa que tinha. Aliás, os próprios representantes das potestades transcendentes – teólogos do Vaticano – já decidiram, academicamente, que o inferno, ao menos aquele que Dante descreveu, não existe. Não disseram, mas creio que devem dar razão a Sartre, de que “inferno são os outros”.

Mas o que eu queria dizer desde o início, pretensiosamente (para abordar coisas tão prosaicas de nossa conjuntura nacional), era que o fundo do poço no Brasil é algo relativo. Depois dos sete círculos dantescos, ainda há uma infinidade de puxadinhos abaixo do porão. Quando pensávamos que, em termos morais (nada a ver com o Poetinha) a classe política já havia experimentado de tudo, de imediato aparecem nos noticiários algo que nos deixa de queixo caído. Aliás, se isso pudesse ser tomado como referência, já teríamos uma geração inteira desqueixada. Talvez por esta razão, sem darmos conta, é que não nos queixamos mais. Da mesma forma, quando vemos as novas – e modernas, e infalíveis, e definitivas – medidas econômicas anunciadas pelos economistas de plantão, temos a certeza de que não é possível que haja um fundo – fundo é o que mais falta em nossas finanças. A água bate no pescoço, embora as verbas estejam escapando pelo ralo, e a liquidez saindo pelo ladrão. Os administradores públicos cortam na própria carne – a nossa, não a deles. Arrocham um pouco mais, não os gastos públicos, mas a corda em nosso pescoço. E mesmo assim a gente não morre sufocado. Só fica um pouco mais calado.

Já houve um tempo em que carregar dinheiro nas cuecas era o suprassumo do escândalo político. Um agente público ser pego com dólares na roupa de baixo, era o limite da baixeza, significando que não tinha mais bolsos disponíveis, nem problemas de consciência; com o nome sujo, não dispunha sequer de uma conta em um paraíso fiscal para fazer transferências escusas. Enquanto se apontava para o indigitado pego com a bufunfa nas cuecas, às nossas costas continuavam a passar sorrateiros contínuos (office boys) da corrupção. Então, passamos a outros quinhentos em termos de padrão de imoralidade: ao vermos o homem-de-confiança-de-temer, correndo pela rua com um punhado de notas da propina, a mala passou a ser o limite. Até que o Geddel nos surpreendeu com um apê lotado de malas. Eu me pergunto, abestalhado (lembrando Raul Seixas): onde vamos chegar? Quem vai nos surpreender com o próximo círculo dantesco do inferno imoral, quem sabe com um contêiner repleto de dólares.

No passado, ouvia um ditado que dizia: “feio é roubar e não poder carregar”. Nunca havia discutido a respeito do significado disso. Agora, homem feito (lembrando Renato Russo), eu me dou conta de que, assim como me tem acontecido com vários provérbios, esta inverdade é uma falácia oriunda do cansaço (ou preguiça, ou preconceito) cultural. Feio é levar dinheiro de propina, seja nas cuecas, seja em malas de rodinha. A degradação moral de um povo é que estabelece os limites de sua desgraça. Assim, espero, como a dignidade cidadã pode recuperar o sentido de sua felicidade, e a busca de uma Pátria generosa e justa para todos – para onde poderemos nos conduzir de mala e cuia.

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Um Comentário

  1. Vou-me embora pra Pasárgada
    Mestre Orlando, parabéns pelo texto – dou-lhe um dantesco 10.
    Por isso,
    Vou-me embora para pasárgada
    Onde canta o Sabiá;
    Lá sou amigo do rei
    As aves, que aqui gorjeiam,
    Não gorjeiam como lá.
    Minha terra tem primores,
    Que tais não encontro eu cá;
    Em cismar –sozinho, à noite–
    Mais prazer eu encontro lá;
    Não permita Deus que eu morra,
    Sem que eu volte para lá;

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