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ARTIGO. Luciano do Monte Ribas, a volta aos tempos do trem e, especialmente, no que poderá virar a Gare

Todos pela Gare

Por LUCIANO DO MONTE RIBAS (*)

Se a memória não me trai, a primeira vez que viajei de trem foi quando eu tinha uns 5 anos. Fomos para Porto Alegre numa “cabine”: eu, minha mãe e a tia Sueli, irmã da minha vó Judith. Nosso destino final era a praia e, pelo que lembro, o trem ainda chegava até as proximidades da Estação Rodoviária. Talvez tenha existido uma viagem anterior, a Santo Ângelo, mas dessa não tenho nenhum lampejo de lembrança.

Não sei se foi dessa vez, mas retornamos de “húngaro”, que era um trem moderno para época, com carros em estilo europeu e serviço de bordo. Lembro de beber refrigerante de latinha pela primeira vez nessa viagem, algo muito diferente para mim, um guri neto e filho de bolicheiros, acostumado só com Cyrillinha, Pepsi e Minuano em garrafinhas.

Lembro de outra viagem, para Cruz Alta. Dessa vez embarcamos na hoje destruída Estação do Pinhal, em Itaara. Era um prédio acanhado, de madeira, de onde foi possível, um dia, embarcar para viajar até São Paulo. Nela meu pai subia nas composições com um tabuleiro de pastéis feitos pela vó Dina para, ao vendê-los aos passageiros esfomeados, ajudar no orçamento de casa. Isso no início da década de 50 do século XX, quando o mundo era outro.

O irmão mais velho do meu pai, o tio Wilson, era ferroviário. Foi chefe da estação de Santa Maria, morou na Vila Belga e apareceu em um comercial do Banrisul tocando o desaparecido sino da Gare. Acho que o locutor ia citando personagens do RS e, quando aparecia o meu tio, dizia “o Wilson da estação” (ou algo parecido).

No Brasil, excetuando os metrôs de algumas cidades, as duas últimas vezes em que viajei de trem foi pela militância estudantil. Em uma delas, alugamos um vagão para levar quase 70 estudantes para o congresso da UGES, em Porto Alegre. Engataram o nosso vagão no final da composição e, naquele pinga-pinga que era uma viagem até a capital, não sei como não perdemos alguém pelo caminho, já que virou uma espécie de “esporte” para alguns mais ousados (onde eu não estava incluído) descer do trem e correr para subir de volta assim que ele andasse. Na outra, fomos eu, o Rogério Mangini (o Índio) e o Élvio Alves (o Ferrinho, infelizmente já falecido) de segunda classe, alternando sono e vigilância, pois éramos três guris do PRC e fazia apenas quatro anos que a ditadura havia acabado.

Reencontrei os trens ao subir em um Frecciarossa, uma máquina impressionante que corre a 360 km/h, seis vezes mais do que as nossas locomotivas “a diesel” e as nossas estradas estreitas propiciavam. Aliás, se hoje houvesse um desses aqui o trajeto Santa Maria – Porto Alegre seria feito em 1h30min, talvez até menos, dependendo de eventuais paradas – um sonho sepultado pela privataria tucana…

A essa altura, talvez meus três ou quatro leitores estejam se perguntando por que tanta nostalgia com os dias em que os trens de passageiro ainda existiam, mesmo que já em decadência.

Provavelmente, seja porque o meu envolvimento na luta para mudar o edital que entrega a antiga Estação Ferroviária a um entre privado tenha remexido as memórias. Talvez também seja porque a falta de diálogo, o desrespeito à lei 6123/2017 (que criou o Sistema Municipal de Cultura, onde está o Conselho Municipal de Política Cultural), os projetos fracassados do secretário de Desenvolvimento Econômico, Turismo e Inovação (como a segunda quadra da Bozano e a reforma do Calçadão), a arrogância da administração municipal, a pressa em ano eleitoral e todas as demais circunstâncias envolvendo essa cessão justifiquem o nosso medo de que a Gare vire uma mera praça de alimentação.

Ainda há tempo para que a prefeitura desça do salto e dialogue com a comunidade sobre como pode ser melhorado o processo de cessão da Gare, respeitando a destinação à cultura, à educação e ao turismo, mesmo que novos usos sejam agregados para viabilizar a recuperação. Não é nada mais do que isso que os diferentes grupos, instituições, entidades e pessoas desejam. Falta o prefeito ter humildade para nos ouvir e colocar o assunto nos trilhos.

(*) Luciano do Monte Ribas é designer gráfico, graduado em Desenho Industrial / Programação Visual e mestre em Artes Visuais, ambos pela UFSM. É presidente do Conselho Municipal de Política Cultural e um dos coordenadores do Santa Maria Vídeo e Cinema, além de já ter exercido diversas funções na iniciativa privada e na gestão pública.

Para segui-lo nas redes sociais: facebook.com/domonteribas – instagram.com/monteribas

Observação do autor, sobre a foto: imagem obtida em 1993, quando a Estação Ferroviária ainda operava. Nela ainda estavam presentes o sino e o relógio, dois elementos importantes do conjunto arquitetônico que, infelizmente, desapareceram. Essa foto integra uma série que serviu como base para o projeto de decoração da Boate do DCE, feito por mim, naquele ano. A modelo que aparece na imagem é Cacá Martins.

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Um Comentário

  1. Minuano Limão, Laranjinha, numa época em que Coca quase não se encontrava. Não peguei a época do trem, mas nostalgia vem. Alás, primeira fábrica que coloquei o pé foi a Vontobel, passeio da escola.
    Frecciarossa vai até 300, bom lembrar que gringo é bicho garganta, que se acha bastante esperto, só não é muito inteligente; ‘alemão’ também não vai longe, acham que são uma dádiva para a humanidade. Sempre digo que o que me salva é o 1% trasmontano.
    Gare se der em algo agora será surpresa. Transformar em algo ‘cultural’ que quase ninguém frequenta também não é o caso.

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