Artigos

O retorno do Talibã – por Leonardo da Rocha Botega

Um pouco de história e as consequências do que se vê agora no Afeganistão

Em janeiro de 2003, Tariq Ali chamou atenção para o fato de que, passada a comoção mundial e o sentimento de vingança pelo atentado contra as Torres Gêmeas, o cenário afegão apontava para a gradual retorno da velha ordem. Segundo o escritor paquistanês, estavam enganados aqueles que determinavam o fim do Talibã. Passados quase 20 anos do fático 11 de setembro de 2001, a realidade demonstra que ele estava certo.

Na última semana o mundo assistiu ao avanço do grupo fundamentalista que governou o Afeganistão entre 1996 e 2001. Um avanço que culminou no último domingo com a tomada da cidade de Cabul. Dezoito meses após o “Acordo de Paz” assinado com os EUA em Doha, no Qatar, e quatro meses depois do anúncio da retirada de todas as tropas estadunidenses pelo presidente Joe Biden, o Talibã concretiza a sua volta ao poder.

O Talibã foi fundado em 1994 por um grupo que reunia entre 40 e 50 combatentes mujahideen, a maioria de etnia Pashtun, que pertenceram a grupos que foram financiados e armados pelos EUA na luta contra a ocupação soviética entre 1979 e 1989.

Com a retirada das tropas da URSS e o caos que se instalou no Afeganistão, o grupo se organiza com o objetivo de tomar o poder e ordenar o país através da Sharia (lei islâmica), interpretada a partir de uma ideologia que mistura o wahharabismo, vertente mulçumana fundamentalista, com as normas pashtunwali. Uma ideologia obscurantista que considera hereges tanto os sunitas, como os xiitas.

O objetivo é atingido em 1996. Em maio de 1997, o Talibã promove os Massacres de Mazar-E-Sharif, cidade que era controlada pelas forças adversárias. Em quatros dias, mais de duas mil pessoas foram mortas e milhares de crianças e mulheres foram violadas e sequestradas.

Em 12 de agosto de 1998, queimaram todo o acervo de cerca de 55 mil livros da biblioteca da Fundação Nasser Khosrow. Entre 1996 e 2001, o Talibã não apenas construiu um dos regimes mais obscurantistas do mundo, como também transformou o Afeganistão em uma base de treinamento para grupos terroristas como a Al-Qaeda de Osama Bin-Laden, outro ex-aliado estadunidense.

A Al-Qaeda foi responsável pelos atentados contra as embaixadas dos EUA no Quênia e na Tanzânia em 1998, pelo ataque contra o navio da marinha estadunidense USS Cole, no porto de Áden, no Iêmen, em 2000, e pelos atentados contra as Torres Gêmeas em 2001. Como resposta a este último atentado é que o então presidente George W. Bush adotou a Guerra ao Terror como política para a região do Oriente Médio.

Nos marcos da Guerra ao Terror, o Afeganistão e o Iraque foram invadidos, o governo líbio foi derrubado e a Síria foi empurrada para uma interminável guerra. O resultado foi o aumento da instabilidade na região. Da caixa de pandora aberta no Iraque surgiu o ISIS; a Líbia segue mergulhada em uma intensa guerra civil promovida por inúmeras milícias armadas; a Síria foi destruída e os Curdos estão entregues à própria sorte diante do genocídio que vem sendo promovido pelo governo turco. A volta do Talibã ao poder é apenas o complemento deste cenário caótico.

É inegável que o retorno do Talibã ao poder no Afeganistão representa diante da opinião internacional um duro golpe e se soma a outros sinais da decadência da hegemonia mundial estadunidense. O alarme de que sozinho o governo afegão não daria conta de derrotar uma ofensiva talibã já havia soados nos 24 dias que se seguiram a assinatura do “Acordo de Paz” no Qatar. Nesse pequeno espaço de tempo, o Talibã realizou 405 ataques, uma média de 17 por dia. Ou seja, não havia dúvidas de que a saída das tropas estadunidense abriria o caminho para a derrubada do governo afegão.

Desta forma, ficou evidente que não foi pensando na paz ou nos direitos humanos do povo afegão, sobretudo, das mulheres, que as tropas estadunidenses permaneceram ao longo de 20 anos no país. Uma ocupação que iniciou com forte apoio popular, graças ao seu proposito vingativo, e que gradativamente foi se tornando profundamente impopular, sobretudo pelos seus altos custos. Ao todo, as operações no Afeganistão custaram cerca de US$ 2,2 trilhões, 2,3 mil militares estadunidenses mortos e mais de 20 mil feridos.

Entre a popularidade interna ou a integridade dos afegãos, o governo estadunidense optou pela primeira. Olhou para dentro! Foi olhando para dentro que os EUA retiraram o Talibã do poder. Foi olhando para dentro que Biden declarou “isso acaba aqui, comigo”, mirou os eleitores estadunidenses e entregou o povo afegão a própria sorte. Espero (sem muita esperança) que pelo menos não feche os olhos para os futuros refugiados.  

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

Observação do Editor: A foto (sem autoria determinada) da volta dos talibans ao poder no Afeganistão é uma reprodução da internet.

Artigos relacionados

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

4 Comentários

  1. Combater o terror, vingança talvez. Mas a Albania, Belgica, Bulgaria, Canada, Croacia, Republica Tcheca, Dinamarca, Estonia, França, Alemanha, Grecia, Hungria, Islandia, Letonia, Lituania, Luxemburgo, Paises Baixos, Noruega, Polonia, Portugal, Romenia, Eslováquia, Eslovenia, Espanha, Turquia e Reino Unido tiveram maior ou menor participação. Mais uma duzia de outros paises contribuiram em menor grau. A resolução da ONU previa a instituição de um governo central e de um exercito. Deu ruim.
    Numeros enganam, falam que entre 30 e 50 mil veteranos cometeram suicidio. Fora a sindrome de stress pos traumatico, alcoolismo, drogas, etc.
    Saída tem a ver com o estado das coisas. Analfabetismo no pais passa de 40% e no exercito que estavam tentando formar chega nos 90%. Depois de 20 anos. Corrupção no governo era coisa para brasileiro nenhum botar defeito.
    Saldo positivo é que os idealistas levaram mais uma na cabeça. Alás, uma dona de ONG de ‘empoderamento feminino’ em Cabul estava dando entrevista. Agora vai ter que sair de lá e trabalhar para ganhar a vida.
    Resumo da ópera: Choque de Civilizações do Samuel Huntington continua leitura obrigatória.

  2. Bush não deveria ter invadido o Iraque. Obama não deveria sair tão rapido. O Daesh (ou Isis) surgiu no vácuo. Teoricamente foi extinto, mas existem grupos na Libia e no resto da Africa que se declaram parte do que existia no Iraque. Alás, França que estava combatendo estas gentes no Sahel também está saindo. Á francesa.
    Império americano está em decadencia, não há duvida. Chineses até tiraram sarro, tomada de poder pelo Talibã teria sido mais suave que a transição presidencial nos EUA. A questão não é essa, demora ainda. Nem os depositos de litio e terras raras fizeram os americanos ficar. Agora em junho estavam com tropas da OTAN fazendo exercicios na Bulgaria, Estonia e Romenia. Ou seja, briga agora é com a Russia e a China. Alás, os chineses estariam construindo um canal na Nicaragua. Alás, a Turquia que também quer construir o proprio bloco (Azerbaijão, Turkemenistão, Uzbequistão, por aí) também planeja construir um novo canal. O atual tem limitações em tratados no que diz respeito a tonelagem de embarcações militares que podem passar.

  3. Afeganistão é uma colcha de retalhos. Senhores da Guerra controlam nacos de território. Mais ou menos como a região onde hoje é a Alemanha. Dois mil anos atrás, é verdade. Fundador do Talibã, Mullah Omar, o fez, segundo varias versões, para impedir/vingar estupros de crianças por um ou mais ‘warlords’. Fato é que depois da saida dos sovieticos instalou-se o caos e uma guerra civil.
    Al Qaeda e Bin Laden estavam no Sudão, tiveram que sair e acabaram indo para o Afeganistão. Invasão do pais foi aprovada na ONU com anuência do Conselho de Segurança.
    O que aconteceu na Libia e na Siria é fruto da Primavera Arabe. Fato.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo