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A fé nunca foi incompatível com a alegria de viver – por Valdeci Oliveira

Proibição da arquidiocese: reedição da ‘caça às bruxas’ do tempo da inquisição?

É com um misto de surpresa e tristeza que acompanho a proibição, levada a cabo pela Arquidiocese de Santa Maria, de festejos em paróquias do interior, as famosas “Domingueiras”, que com música, bebida e dança atrai muita gente, principalmente grupos da terceira idade durante as festas de padroeiro.

Sob o manto da “moralidade”, a decisão da circunscrição eclesiástica santa-mariense vem sendo duramente criticada por boa parte da população, seja pela forma como se deu, pelas falas preconceituosas utilizadas ou pela tentativa de impor à maioria um capricho. Ademais, são essas comunidades que mantém os salões, que dão vida aos festejos.

A proibição por si só já seria condenável, mas piora quando vemos que os motivos alegados apenas demonstram que o que impera é o ignorar destas localidades, o que elas realmente desejam, como realmente se comportam. Falo do cerceamento da alegria, da confraternização, união, do mostrar espíritos livres, troca de afetos e saberes, demonstrações de amizade. Falo de saúde mental, falo de corpo e mente, falo de convívio, cultura local.

Proibir o uso dos salões paroquiais, que muitas vezes são a essência das expressões social e cultural de inúmeras comunidades, é perder ainda mais terreno, forçar o “desgarrar das ovelhas”, é fazer ouvidos moucos às vozes que estão do mesmo lado, mas que ousam discordar.

Muito já se perdeu e muito poderá ser perdido num momento em que se busca uma maior aproximação da Igreja com as pessoas, num momento em que temos como líder máximo dos católicos um senhor chamado Francisco, que justamente se diferenciou dos últimos Papas por sua postura de buscar colocar a Igreja a viver o cotidiano do povo como mais um integrante e não como um ente intangível. A Fé deve – ou no mínimo deveria ser – inclusiva, nunca aquela que dispersa, que nega o direito, que ignora o ser humano enquanto sujeito em constante transformação e evolução.

Desde muito cedo essa foi a minha realidade, a de participar de todas as atividades organizadas pela igreja e pela minha comunidade, a comunidade de São José da Porteirinha no interior do hoje município de Dilermando de Aguiar. E nesses festejos onde eu morava ou nas reuniões sociais nas localidades vizinhas que ia quando criança foi um passo para uma participação mais efetiva e séria a partir da fase jovem-adulta.

Assim, a minha caminhada, para além da participação litúrgica, se fez como catequista, coordenador de grupos de família e militante das pastorais de juventude, operária e da saúde. E o que sempre presenciei foi a comunhão, a ajuda mútua, a alegria, a exaltação à vida.

Mas hoje parece que a visão imposta é a que cobre de culpa – ou pecado – os grupos de terceira idade que se divertem após as missas. Trata-se de uma visão baseada em narrativas grosseiras, com termos chulos por um lado – “músicas bagaceiras e bebedeiras” – e o medo e preconceito pelo outro – “de brigas e de idosos que estariam contraindo Aids”. Ao mesmo tempo, quem desobedecer corre o risco de ver a ameaça de excomunhão se tornar realidade.

Guardadas as devidas proporções, vemos uma reedição da “caça às bruxas”, no melhor estilo da inquisição espanhola, que ao se espalhar pela Europa, trouxe dor e pavor ao Velho Continente no final do século XIV e meados do século XVII. Coincidentemente, ao falar com as pessoas sobre o que vem ocorrendo em Santa Maria a partir da proibição da Arquidiocese, um conhecido me lembrou do filme “O Nome da Rosa”, adaptação cinematográfica da obra de mesmo nome do escritor e filósofo italiano Umberto Eco.

Estamos em 1327 no que futuramente viria a ser a Itália, onde o bispo da ocasião proíbe o sorriso, deixando claro de uma vez por todas a existência desejada pelo poder de uma praticamente inexpugnável tensão entre a fé religiosa e a expressão humana. Ao fazer isso, a autoridade religiosa incute nas pessoas o sentimento de que a alegria e a felicidade não passam de pecados a serem combatidos a qualquer custo. Assim como lá, por aqui também se busca controlar as emoções humanas.

Isso também me lembra as campanhas de desinformação na época do desenvolvimento das vacinas para enfrentarmos a pandemia, o que mostra que o negacionismo tem várias faces. Negar que alegria e fé possam andar juntas é uma delas.

O momento exige humildade, diálogo, paciência e perseverança. O momento exige resistência a posturas autoritárias. O momento exige que nos unamos para evitar que a relação entre as pessoas e a Igreja se transforme em “não-lugares”, em que não haja uma identificação de pertencimento, apenas de uso e consumo da sua fé.

Para mim, a doutrina Cristã não é isso, pois a minha Igreja é a do Cristo justo e acolhedor, o Cristo da tolerância, do afago, do compartilhamento e da vida em comunhão com Deus e com meus semelhantes.

A fé nunca foi e nunca será incompatível com a alegria de viver. E para quem esqueceu, o primeiro milagre de Jesus foi numa festa, quando transformou a água em vinho.

(*) Valdeci Oliveira, que escreve sempre as sextas-feiras, é deputado estadual pelo PT e foi vereador, deputado federal e prefeito de Santa Maria.

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