Obras das enchentes aumentam o risco de viajar à noite nas estradas gaúchas – por Carlos Wagner
“O perigo de transitar à noite precisa estar entre as pautas prioritárias”
A imprensa, em particular a do Rio Grande do Sul, deveria reforçar nos seus noticiários a recomendação para que as famílias em férias evitem viajar à noite pelas estradas gaúchas. Há muitas obras em andamento por conta dos estragos causados às pistas, pontes e outras obras rodoviárias pelas três enchentes, duas em 2023 e a última em maio de 2024, que atingiram 471 dos 497 municípios do Estado, deixando 183 mortos, 27 desaparecidos e muitos estragos à infraestrutura.
De uma maneira geral, as obras estão bem sinalizadas. O problema não é a sinalização. Mas o fato que a maioria das rodovias federais e estaduais são de mão simples e, portanto, exigem do motorista muito cuidado. Um erro pode ser fatal. Uma coisa é transitar durante o dia e outra, à noite. De dia, as obras são vistas de longe e o condutor tem tempo de se organizar, olhar pelo retrovisor e diminuir a velocidade com segurança. À noite, só verá a obra quando a sinalização refletir a luz dos faróis. Este é o nosso assunto.
Caiu a minha ficha sobre os riscos de viajar à noite nas estradas gaúchas na última segunda-feira (23). Sai da Capital no final da tarde rumo à região de Sarandi, um percurso de 350 quilômetros, a maior parte pela BR-386, rodovia se estende por 600 quilômetros, ligando a Região Metropolitana de Porto Alegre às cidades do noroeste do Rio Grande do Sul e o oeste de Santa Catarina. Em números redondos, 50% da estrada é concedida a empresas particulares, que cobram pedágio, e o restante é administrado pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT), uma autarquia federal. De Canoas, na Região Metropolitana, a Estrela, no Vale do Taquari, ao lado de Lajeado, a rodovia tem mão dupla, portanto não apresenta tantos riscos.
Os problemas começam a partir de Estrela, onde cheguei no início da noite. A começar pelas pontes sobre o Rio Taquari e o Arroio Boa Vista, que foram severamente atingidas pelas enchentes. As obras de restauração ainda estão em andamento e os veículos passam por corredores estreitos, sinalizados com cones e luzes, o que facilita um pouco a vida do motorista. Depois das pontes, segue-se um trecho em obras de duplicação da rodovia de aproximadamente 20 quilômetros, entre Lajeado e Marques de Souza, pequena cidade agrícola. Parte da obra está concluída e outra, não.
Quem não conhece o trecho pode ter problemas caso não fique atento à sinalização. Chega-se, então, à Serra de Soledade, uma subida de sete quilômetros, sem grandes problemas porque naquele ponto a estrada é larga e bem iluminada. O grande rolo vem a seguir: os 59 quilômetros entre Pouso Novo, que fica no cume da serra, e a cidade de Soledade. A uns poucos quilômetros da área urbana de Pouso Novo uma encosta da montanha cedeu durante as chuvas e levou junto um pedaço da BR-386.
Os trabalhos de reconstrução ainda estão em andamento. Logo adiante, começam os canteiros de obras de duplicação em três trechos. Era noite alta quando passei por ali. Parecia que estava dirigindo em um videogame, porque o caminho está todo sinalizado com cones que refletem a luz dos faróis dos carros. O meu grande medo era que algum desavisado vindo em sentido contrário ao meu entrasse no corredor errado e acabássemos colidindo de frente.
Sou um velho repórter, 74 anos, trabalhei em redação de 1979 a 2014 e atualmente escrevo livros-reportagem e discuto o futuro da nossa profissão em palestras pelo interior do Brasil. Passei boa parte da vida na estrada. Portanto, sei farejar o perigo. Esta história que estou contando pode ser uma tragédia anunciada, caso a imprensa não faça o alerta sobre o perigo das obras nas rodoviais gaúchas. Lembro o seguinte. Sei que durante as férias, além das costumeiras viagens ao litoral, também é intenso o movimento de famílias entre o Rio Grande do Sul e as cidades povoadas pelos gaúchos nas chamadas fronteiras agrícolas (oeste catarinense e paranaense e estados do Centro-Oeste e do Norte).
É comum viajarem à noite para visitar os parentes. Por ser repórter, tenho uma rede grande de contatos nos quatro cantos do Brasil. Antes de escrever este texto liguei para alguns colegas e falamos sobre o assunto. Fui alertado que existe a expectativa de acontecer, neste verão, uma significativa vinda de argentinos, uruguaios e paraguaios para o litoral de Santa Catariana por conta da desvalorização do real perante o dólar americano. A maioria das rotas de argentinos, uruguaios e chilenos para o litoral catarinense passa pelas estradas gaúchas, em especial as BR-290 e BR-386.
Grande parte desses turistas viaja à noite. Conversei com outro colega, este de Santa Rita, cidade agrícola de 38 mil habitantes no departamento (estado) do Alto Paraná, no Paraguai. A maioria da população é de agricultores gaúchos e seus descendentes. Ele disse que é tradição as famílias visitarem, no final do ano, os seus parentes no interior gaúcho e depois viajaram para o litoral de Santa Catarina. Já fiz reportagem sobre o assunto. Sei que nos dias atuais as empresas de comunicação trabalham com pequenos efetivos de repórteres em campo. A maioria deles fazendo textos, fotos, vídeos e sonoras para todas as plataformas de comunicação.
Portanto, não têm tempo de “cavar pautas”, limitando-se a fazer somente “o arroz com feijão” que editor pede. Mas é o seguinte. O perigo de transitar à noite nas estradas gaúchas precisa estar entre as pautas prioritárias. Por quê? Simples, se os jornalistas não falarem sobre o assunto ninguém vai lembrar que o perigo existe. E ele existe, podem acreditar, eu vi.
Na lida de repórter aprendi que, na prática, os assuntos só viram prioridade na pauta depois das tragédias. Digo que as novas tecnologias da comunicação nos permite, nos dias atuais, detectar as tragédias antes que elas ocorram. Hoje, o jornalismo tradicional disputa espaço entre os leitores com as fábricas de fake news. Mas apenas o jornalismo profissional tem tecnologia para usar os dados que permitem antever uma tragédia, se nada for feito. As redações não podem deixar passar esta oportunidade.
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(*) O texto acima, reproduzido com autorização do autor, foi publicado originalmente no blog “Histórias Mal Contadas”, do jornalista Carlos Wagner.
SOBRE O AUTOR: Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela UFRGS. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 74 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.
Resumo da opera. Texto para encher linguiça.
‘Mas apenas o jornalismo profissional tem tecnologia para usar os dados que permitem antever uma tragédia, se nada for feito’ Obvio que não. Alas, mesmo que tivessem o monopolio da ‘tecnologia’ faltaria recursos humanos. São um bando de cabeças de osso para sopa. Existem canais diretos (Inpe, Inmet, por exemplo). Existem podcasts com entrevistas sem horario para acabar e seus cortes.
‘Hoje, o jornalismo tradicional disputa espaço entre os leitores com as fábricas de fake news.’ Só um completo trouxa para acreditar nisto. Novas midias noticiam coisas que a midia legada ignora, mais preocupada em fazer sermão e caçar clicks.