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Desacordo Trump-USAID – por Orlando Fonseca

A primeira vez que ouvi falar na agência norte-americana de ajuda humanitária não era uma sigla isolada, mas associada a outra que indicava o vínculo com um ministério brasileiro. Iniciava meus estudos na UFSM, em meados dos anos 70, e havia protestos de estudantes e professores, expresso em faixas pelo campus, contra um tal de Acordo MEC-USAID (o povo aportuguesava, falando “usaid”). Até então não havia me dado conta do tamanho da influência do governo americano nas ações daquele regime de exceção que fazia e acontecia pelo Brasil. Sequer havia ligado a sigla com o programa Aliança para o Progresso, que trouxe um condomínio residencial popular na zona norte de Santa Maria. Dou-me conta de tudo isso ao ler as notícias dos primeiros atos do segundo mandato de Trump, entre os quais, o fechamento da Agência, embora a pronúncia em inglês tenha sido corrigida. E ainda (“o tempora, o mores”) quanta diferença entre os significados de tal entidade, que agora me faz lamentar que tenha tido as atividades interrompidas.

Antes de tomar contato com as broncas dos universitários com o famigerado acordo, cujo emblema concreto era o Prédio da Interamericana (atual sede do Centro de Ciências Naturais e Exatas), e sem me dar conta da relação, eu já havia conhecido as ações de outro programa daquela agência, que tinha construído uma COHAB, para onde foram morar minha tia, minha avó e meus primos. A Vila Kennedy foi construída pelo programa Aliança para o Progresso, que os governos militares abraçaram, ainda nos anos 60. Para mim, uma criança naquela época, um projeto subsidiado que permitiu aos meus familiares adquirirem a sua casa própria não trazia qualquer suspeita, muito pelo contrário. Como eram bons aqueles americanos (fossem quem fossem).

Mal sabia eu que o Programa Aliança para o Progresso havia sido criado, em meio à guerra-fria, por John Kennedy, a fim de dar ajuda aos países latino-americanos. Não porque fossem solidários, mas para barrar qualquer resquício de influência que pudessem receber do outro bloco, o comunista. E tudo tinha a ver com a tal agência USAID, com a qual iria me deparar, anos depois, já com a cabeça esclarecida no meio universitário, contrariado com os acordos escusos que o MEC (no regime militar) havia posto em prática. Aquele programa de ajuda humanitária era parte do que viria a ser chamado de “soft power” nos estudos de relações internacionais. Algo contrário à política do “big stick” (porrete) de Roosevelt, agora retomado por Trump sem os requintes da doutrina Monroe. Como já se demonstrou errático em medidas radicais tomadas no início de seu governo, esta também já tem a contestação de autoridades e entidades americanas. A justiça suspendeu os atos presidenciais, pois ele não pode fechar a agência de maneira unilateral. O Congresso precisa aprovar porque uma lei determina a existência e o financiamento da USAID. Como se vê, será uma queda de braço entre os poderes, na maior potência econômica mundial.

O fim do Programa deixará sequelas profundas no combate à pobreza e na defesa do ambiente (vide a Amazônia). A agência tem projetos em mais de 120 países, espalhados pela África, Ásia, Oriente Médio e América Latina. É a maior distribuidora de ajuda humanitária do mundo. Financia programas que promovem direitos humanos, educação, democracia e o combate de doenças, como AIDS e Ebola. Quanta diferença daquelas ações negociadas em segredo com os governos militares em 1966, produzindo uma profunda (e inócua) reforma no ensino brasileiro. No fundo, pretendiam transmitir a ideologia do regime autoritário, ao exaltar o nacionalismo e o civismo dos alunos, eliminando as disciplinas que produzissem reflexão e análise. Com o tempo, em vista da ação de grupos revolucionários na América Latina, os programas da Agência foram usados na repressão a rebeliões de esquerda, em apoio aos golpes para a instalação de governos de direita.

As mudanças no mundo atual levaram Trump e sua trupe a investir no slogan da América Grande Outra Vez (MAGA, na sigla em inglês). No entanto, que grandeza pode haver em deixar ao desamparo uma grande parcela da humanidade, sujeita a doenças, fome e guerras? Não participar do esforço universal pela defesa do ambiente natural, também não me parece uma boa política. Simplesmente tornaria a agência, ora em vias de fechamento, inexpressiva, pois tem sido fundamental a sua participação financeira quase majoritária. Por enquanto, só nos resta lamentar, já que protestar não faz mais sentido.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela “Da noite para o dia”.

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8 Comentários

  1. Resumo da opera. Relação divida/PIB dos paises desenvolvidos já foi utilizada para justificar gastos astronomicos por aqui. Os mesmos não estão entregando o que deveriam e estão a beira da falencia. O que leva a instabilidades politicas. Agente Laranja está com popularidade em alta. Quem ataca ele ou Elon Mush entra na categoria ‘estava roubando também’. Corrupção não é coisa de pais terceiromundista, basta ter um pilha de dinheiro sem dono que aparece.

  2. Alas, aqui existe um ‘relogio dos tributos’, um ‘relogio das sonegações’. Por lá existe um relogio da divida publica. Deveriam criar um aqui. Alas, os vermelhos historicamente desejavam uma auditoria da divida publica (lacração, ‘retorica’). Mas só no lado da divida, partidas dobradas é coisa da Globo. Por lá a auditoria está no lado da despesa. O que aconteceria aqui?

  3. Espertos por lá falam em burocracia inchada, dinheiro não chega na ponta, na atividade fim. Congresso fiscalizando nada, repetindo orçamentos e autorizando despesas no automatico. Resultado é uma divida de 38 trilhões de dolares. Com um PIB de 27 trilhões. Ou seja, se não errei nas contas, 140%. Cada ianque já nasce devendo perto de 1 milhão de dolares. Mesmo com os juros mais baixos que os tupiniquins mais de 25% dos tributos são usados para pagar juros. Não é sustentavel.

  4. E a Bispa que deu lição de moral no Agente Laranja? Pois então, os numeros do ano passado não estão disponiveis (???), mas em 2023 ela ganhou 53 milhões de dolares de diversos orgãos do governo para assentar 3600 imigrantes ilegais. Fonte: New York Post. Porém isto a midia cumpanhera não noticia.

  5. Democratas estão perdidos. Protestam sem pensar muito na mensagem que estão enviando. Na equipe de Elon Mush existem dois agentes do Tesouro ianque. Tem acesso ao sistema de pagamentos só no modo leitura. O sistema só pode ser alterado pelo Federal Reserve e não é nada simples.

  6. ‘Por enquanto, só nos resta lamentar, já que protestar não faz mais sentido.’ Nunca fez sentido. Ou alguém acredita que protesto de cucarachas nos cafundos da AL alguma vez preocupou algum ianque?

  7. ‘Não participar do esforço universal pela defesa do ambiente natural, […] pois tem sido fundamental a sua participação financeira quase majoritária.’ Mais uma hipocrisia vermelha, a Ianquelandia não presta, mas o dinheiro que mandam ‘é bom para K7’.

  8. Agencia, obviamente, não é a mesma da era mesozoica. Deixou de ser um orgão de Estado para ser um órgão do Partido Democrata. ‘Combate a pobreza’ e ‘defesa do ambiente’ evidentemente são só a desculpa. Não me surpreenderia se bater o FBI por lá e passar o rodo, democratas, republicanos e funcionarios. Não é só a ‘beirada que volta’, também despesas lançadas sem o codigo ( campo em branco) e descrição breve (campo em branco) no sistema. Tornando a auditoria um trabalho bastante dificil. Nenhuma surpresa, o noticiario de lá é diferente do tupiniquim.

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