Artigos

Nos tempos da Rural – por Luciano Ribas

Quando eu era criança, tínhamos uma Rural Willys azul, com uma inconfundível barra branca. Era um veículo rústico, quadrado, com câmbio de três marchas junto ao volante e um painel metálico propício para aqueles imãs com imagens sacras ou fotos de familiares. Aliás, ela era toda pesada, feita com umas chapas de aço que a transformavam em um verdadeiro tanque.

Para quem nunca entrou numa, vale registrar que a Rural tinha itens que causariam inveja aos Flintstones, como uma entrada de ar acionada por alavanca, que mais parecia um aparelho primitivo de musculação. Tinha, também, uma espécie de botão, acionado com o pé esquerdo, que fazia a alternância entre as luzes alta e baixa, além do impressionante “afogador”, talvez a coisa mais difícil de imaginar para quem só conhece os carros com injeção eletrônica e computador de bordo.

Mas o melhor era o estofamento, em azul clarinho, um primor de estilo e design dos anos 60/70. O banco do carona se dobrava todo para que as pessoas pudessem acessar o bancão reto localizado na parte de trás, onde sempre cabia mais um. Cinto, air bag, encosto de cabeça? Não me façam rir…

Uma vez, esta Rural estava estacionada ao lado de casa e eu e um amigo, também com uns 5 anos, resolvemos brincar de dirigir. Tudo ia bem até que decidimos pisar na embreagem, que até poderia não ser um grande problema se usar o “freio de mão” não fosse um hábito pouco difundido naqueles tempos – e, diga-se de passagem, o da Rural era um troço com uma aparência que ficava entre a de um guarda-chuva e a de um instrumento medieval de tortura.

Para encurtar o caso, não sei quantos metros a Rural andou, mas ela só não desceu a rua que hoje leva ao Museu de Ufologia, em Itaara, porque o Edson, afilhado da minha vó, conseguiu abrir a porta do motorista e acionar o freio, evitando um (muito) precoce acidente de trânsito…

Nessa Rural, fui para o meu primeiro dia de aula na Escola Municipal Neíta Ramos, em 1979, no então 8° distrito de Santa Maria. Foi nesse colégio que fui alfabetizado pela professora Nilza junto com uns 30 colegas, através do método “da abelinha”. Acho que aprendi rápido, até porque já era um “veterano” de duas temporadas no Girassol, a pré-escola das irmãs de Schoenstatt. Na verdade, até um “prêmio por leitura” recebi naquele ano.

Mas lembrar da Rural me faz também pensar nos meus colegas da primeira série e nos caminhos que cada um deve ter seguido. Sei, por exemplo, que daqueles trinta e poucos, talvez uns 3 ou 4 tenham concluído um curso superior; mestrado, arrisco dizer, acho que apenas eu fiz. Não porque eles não quisessem ou não tivessem capacidade, mas eram tempos de oportunidades escassas, onde até a universidade pública tinha que ser paga.

Era uma época sem Pró-Uni, sem novas universidades federais, sem cursos técnicos, sem Bolsa-Família, sem Pronatec, sem emprego farto, sem educação à distância, sem bolsas para estudar no exterior, sem “Minha Casa, Minha Vida”, sem “Luz Para Todos”, sem SAMU, sem UPAs, sem “Mais Médidos”. Eram tantas as coisas negadas à população, que nem ensino médio existia em Itaara e, a bem da verdade, naqueles tempos até mesmo a liberdade era escassa.

Felizmente, muita coisa mudou e as oportunidades estão acessíveis a todos. Hoje os alunos da Escola Municipal Alfredo Lenhart (o atual nome do colégio onde estudei até a 5ª série) podem sonhar em ser médico, advogado, engenheiro ou professor. E podem fazê-lo porque esse direito foi conquistado, deixando de ser uma exceção ou um favor e possibilitando, inclusive, que eles exijam ainda mais do seu país e de quem o governa.

Nesse país que cresce e inclui sem precisar “esperar o bolo crescer”, lembrar de quando todas essas coisas não existiam não provoca saudade, mas é importante para que as valorizemos. Esse é o caminho para continuar mudando o que ainda precisa ser mudado.

No Facebook: www.facebook.com/luciano.d.ribas – No Twitter: @monteribas 

Artigos relacionados

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

Um Comentário

  1. Meu filho este teu texto,muito bem escrito,me leva a fazer várias reflexões,entre elas uma que esqueceste de mencionar:nem merenda escolar existia, a não ser,aquela que era angariada entre os pais dos alunos.Com os ingredientes coletados fazia-se um sopão.Hoje não precisamos mais pedir aos pais,a merenda servida aos alunos dos ensinos fundamental e médio é fornecida pelas escolas,gratuitamente e da melhor qualidade. Coisa que no tempo da Rural não existia.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo