Nunca sentiu tanto frio – por Márcio Grings
Primeiro foram dores nas costas. Depois os dedos das mãos começaram a endurecer. Logo após, os braços. Suas pernas se enrijeceram. O pescoço doía muito ao se curvar. E finalmente, depois de tanta imobilidade, aos poucos foi se petrificando. Tentou pegar o controle remoto e desligar a TV… Não conseguiu. Virou uma estátua. Nunca sentiu tanto frio em toda a sua vida. Porém, essa sensação gélida era algo completamente diferente de tudo o que já sentiu.
A contagem do tempo passou a ter uma lógica própria. Irreal. Agora ele era um objeto decorativo. Algo interessante e digno de ser admirado, mas sem apreciadores ou estudiosos por perto. Tentava se levantar da poltrona, porém a massa corpórea em que estava encarcerado não movia uma palha. Até que desistiu. Afinal, não sentia fome, sede ou demandava qualquer tipo de necessidade fisiológica. Apenas a sensação de frio permanecia. E um vazio…
Passado um tempo indefinível, certa manhã enfarruscada e ausente de qualquer luminosidade, um estranho entra pela sua casa. Antes, ouve o barulho da chave girando na fechadura. Lembra o leve ruído de um pequeno camundongo roendo algo. Sem pressa.
O estranho entra vagarosamente e o ignora. A primeira coisa que faz é desligar a televisão. Em seguida, anda por todas as peças. Em pleno tour de reconhecimento, abre os armários, urina na privada, observa-se no espelho, lava o rosto na pia do banheiro, puxa a descarga e solfeja uma música qualquer. Desliga a geladeira, gira a tampa de pote de vidro e come com prazer um último biscoito umedecido.
Toma um gole da garrafa de Jim Bean. Aquele homem ainda perde um bom tempo olhando os livros na estante. Folheia alguns deles, lê orelhas, visualiza capas e contracapas, bisbilhota as anotações escritas nos marca-páginas. Ri baixinho de alguns escritos. Em sinal de desaprovação, balança a cabeça. Leva certo tempo até descobrir como se liga o toca-discos, e quando consegue, coloca um LP de Tango pra tocar.
Enquanto isso, o proprietário, mumificado no sofá, observa todo o movimento sem mexer os olhos. Ouve cada ínfimo murmúrio. Como se fosse um cão farejador também identifica um forte aroma de suor vindo daquela intrusa movimentação humana.
Então, o invasor desliga o som, puxa o molho de chaves do bolso, e se dirige ao mesmo lugar que adentrou. Antes, surrupia da estante a garrafinha de Jim Beam e a coloca no bolso do casado. Em seguida, silenciosamente sela a fechadura.
O homem petrificado continua ouvindo os passos do visitante avançando para fora do pátio. Rumor de botinas esmagando grama úmida. A luminosidade do sol finalmente enverniza uma fresta na parede. A porta de automóvel bate. O motor ronca. Duas vezes. O carro parte. Sabe lá pra onde.
Gostaria de poder fechar os olhos. Quem sabe um milagre na Sexta-Feira Santa. Certamente nunca sentiu tanto frio enquanto esteve vivo.
"Ainda sinto as agulhadas mesmo que meus olhos tenham parado de se mexer."