Santa Maria

CRÔNICA. Orlando Fonseca e a volta da Cyrillinha

Cyrillinha

Por Orlando Fonseca*

Nossa memória afetiva é uma elaboração complexa que, tanto pode nos ajudar a manter a identidade, como pode nos pregar peças. Precisamos de referências duradouras no tempo para que compreendamos nosso lugar no mundo, desde as relações familiares e domésticas, até os papéis sociais exercidos como profissão ou como compromissos oficiais. No entanto, muitas vezes, o que imaginamos terem sido imagens, circunstâncias, experiências do nosso passado, podem muito bem ser o resultado de diversas situações em que ouvimos de outros, lemos, admiramos em fotos, filmes ou vídeos os elementos que compõem o quadro que chamamos de recordação pessoal. Impressões de um momento, como o sabor de uma festa impulsionado por um refrigerante. E aí é que entra a Cyrillinha, uma sinestesia que começa no borbulhante nome e que se faz acompanhar de uma experiência gustativa singular.

Por uma razão simples, até que tenhamos domínio da linguagem, algo que começa aos dois anos, o mundo infantil é simbólico e desprovido de arquivo consciente. Aos quatro anos a base da linguagem está formada, e então o que vivenciamos pode compor narrativas que se tornam mais fáceis de guardar. Para muitas crianças, um fato crucial como o primeiro dia de aula – que no passado se dava aos sete anos – é que se torna memória permanente, sem que se precise da ajuda de ninguém para lembrar. Já o que veio antes, tem muito de construção coletiva, no ambiente familiar: tem sempre um irmão, uma tia ou primo para corrigir ou colocar em suspeita o que dizemos ser a nossa lembrança.

Pois eu diria que estou diante de um momento crítico trazido com a volta do refrigerante Cyrilla, ou como prefiro, segundo anotações desse acervo afetivo, a Cyrillinha. Pois estou na iminência de comprovar de fato que minhas elaborações mais caras, como o sabor de algo que, na minha infância, fazia sozinha uma festa, podem ser reais e estão guardadas no tempo, a despeito das mudanças havidas e ocorridas em minha existência por quase seis décadas. Ou não. Uma vez que a produção daquela relíquia havia sido descontinuada há muitos anos, com convicção afirmava aos amigos, os quais não tiveram a mesma ventura que eu, ser aquele um sabor único e maravilhoso. E quando escrevo esta crônica, por não ter ainda degustado o refrigerante outra vez, estou receoso, já que muita coisa mudou no que eu sou, e em todas as circunstâncias, para que possa sustentar as mesmas afirmações.

Vindo de uma família com poucos recursos financeiros, lutando com dificuldades para se manter com dignidade, em uma década complicada (os anos sessenta do século passado), festas de aniversário eram raras. E só fui experimentar Cyrillinha já em idade escolar. E, juro, minhas papilas gustativas ainda guardam com precisão a experiência de saborear aquele aurífero líquido adocicado e efervescente. Não havia, em minha curta e modesta experiência de mundo, nada com que comparar. Era feito da casca da laranja, ouvi dizer, e isso eu conhecia muito bem. Ao redor da nossa casa na Vila Carolina, havia 11 pés de laranjeiras, duas de bergamoteiras. Cheiro e sabores cítricos eu conhecia de olhos fechados, e aquilo era muito outra coisa. Hoje, passados tantos anos, depois de ter experimentado muitíssimos sabores, sou obrigado a comparações, e receio pelo resultado, para minha memória afetiva.

Os tempos são outros, tento me conformar antes da experiência definitiva. Pode ser que a fórmula não possa mais ser repetida, que as laranjas tenham passado por tantos manejos de melhoramentos que já não são as mesmas, e até mesmo a água – que no tempo do primário aprendi ser insípida e inodora – já tenha sofrido metamorfoses. Uma coisa é certa, com uma Cyrillinha na mão, vou abrir uma porta que me levará direto para o passado, e vou aproveitar um possível coro ao fundo, cantando parabéns-a-você, para saudar os empreendedores, cujo projeto devolve à cidade que amamos um dos emblemas de sua identidade histórica.

*Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Observação do editor: Crédito da Imagem: Mercado Livre / Divulgação

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