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Memória e justiça nos 10 anos da Tragédia da Boate Kiss – por Leonardo da Rocha Botega

“Por memória! Por justiça! Que não se repita!” Essas três frases foram transformadas na grande insígnia das atividades que marcaram os 10 anos da Tragédia da Boate Kiss em Santa Maria (RS). Tais frases também estão presentes ao final do último capítulo da série “Todo dia a mesma noite”, produzida pela plataforma de streaming Netflix, baseada no livro de mesmo nome, escrito pela jornalista Daniela Arbex. A série retrata, para além do incêndio criminoso que resultou na morte de 242 pessoas, os desdobramentos posteriores, tendo como foco principal a vida dos quatro familiares que, entre 2015 e 2018, foram processados por membros do Ministério Público.

Algumas polêmicas foram lançadas em relação as interpretações que foram dadas ao conteúdo da série. No último dia 31 de janeiro, o Ministério Público do Rio Grande do Sul divulgou uma nota onde acusa a série de produzir desinformação e uma “memória coletiva contaminada”. A nota não vem assinada por nenhuma pessoa física ou representação de classe, o que leva, portanto, a conclusão de que tem o aval de todo um segmento que compõe a burocracia do Estado brasileiro.

A nota erra ao falar em produção de desinformação, uma vez que se trata de uma ficção com forte exercício de verossimilhança. Mas, acerta quando afirma que a série produz memória coletiva, afinal essa é uma das funções da arte. Acerta também quando chama a memória coletiva produzida pela série de “contaminada”. Porém, alto lá!

Toda memória é “contaminada”, uma vez que é construída por sujeitos e/ou grupos sociais concretos que transmitem conhecimentos que não são neutros. Toda memória, individual ou coletiva, é carregada de uma carga de informações limitadas por questões psicológicas, psíquicas, culturais, sociais e políticas. Sendo assim, toda memória é “contaminada” porque toda memória é parcial e a construção de uma memória coletiva se dá em disputa com outras memórias.

No que tange a Memória do Holocausto, por exemplo, ela pode ser construída tanto pelos dramáticos relatos dos sobreviventes dos campos de concentração, como pelo relato do agente nazista Adolf Einchmann, que em seu julgamento procurou “normalizar” os atos bárbaros cometidos como sendo parte da função do burocrata do Estado que apenas cumpria ordens. A questão é: qual postura ético-política se tem diante das memórias?

A série “Todo dia a mesma noite” produz sim a construção de uma memória coletiva “contaminada”. Porém, o uso do termo não deve ser pejorativo, com objetivo de descredenciamento do outro, mas sim, como a construção de uma memória coletiva que parte de um lugar de fala. A série parte do lugar de fala daqueles que no dia 27 de janeiro de 2013 perderam parte de suas vidas. Daqueles que nos últimos 10 anos tem tido apenas um quatro vazio em seus espaços privados e um grito de justiça nos espaços públicos (e que tiveram que responder juridicamente por esse grito).

O poeta Ferreira Gullar dizia que “a arte existe porque a vida não basta”. “Todo dia a mesma noite” é arte. É uma arte produtora de memória e engajada na luta por justiça. É uma arte dolorosa que só existe porque o que o Estado brasileiro fez até agora não basta. Em uma de suas cenas a personagem Ana afirma: “Eles querem que sejamos esquecidos”. “Todo dia a mesma noite” existe porque o esquecimento não é uma alternativa para quem luta por justiça. Uma memória “contaminada” por uma postura ética de luta por justiça é melhor do que o esquecimento. O esquecimento não garante que a justiça seja feita.

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve regularmente no site, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

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