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Para além da “medula espinhal” – por Luciano Ribas

Einstein nos deixou grandes ideias e frases excepcionais, como a que segue, reveladora do seu profundo antimilitarismo: “detesto, de saída, quem é capaz de marchar em formação com prazer ao som de uma banda. Nasceu com cérebro por engano; bastava-lhe a medula espinhal”.

Vendo o filme “Batalha de Seattle” na tarde quente do segundo dia de 2010, essa frase me veio novamente à mente. A película retrata histórias entrecruzadas ocorridas durante os grandes protestos de 1999 contra a reunião da Organização Mundial do Comércio, na cidade americana de Seattle. Naquele ano, a primeira grande onda de mobilização cidadã contra o tipo de globalização imposta pelos perdigueiros do Consenso de Washington atingiu proporções também globalizadas, dando visibilidade às vozes que afirmam ser possível um outro mundo, com valores mais próximos do humanismo e respeito ao planeta.

O filme retrata fatos reais sob uma trama ficcional, mostrando como a repressão policial assumiu contornos fascistas na “maior democracia do Ocidente”. Cenas reais costuram a participação dos personagens, com farta distribuição de cassetadas, bombas de efeito moral e a tradicional ignorância sádica de quem se submete a simplesmente seguir ordens. Nada inédito (o que é o pior de tudo), pois demonstra que as mais diferentes ideologias não deixam de recorrer à espada quando lhes falta força na palavra.

As cenas me fizeram recuar dez anos mais e me ver novamente no fim da década de 80, na frente da prefeitura de Santa Maria junto com mais cinco ou seis mil estudantes. Era abril ou maio de 1988 e o DCE e a USE (da qual eu fui secretário de imprensa e presidente) pararam a cidade por quase uma quinzena protestando contra o aumento das passagens. No primeiro protesto, o então prefeito Farret, ainda respirando os ares do PDS não aceitou dialogar conosco e, creio eu, também não fez nenhum esforço para evitar que a milicada avançasse contra a massa indefesa, exercitando avidamente seu repertório de truculência e estupidez.

Claro, não apanhamos quietos, embora fôssemos absolutos amadores no ofício da violência. Posso dizer que voaram muitas pedras para cima dos agressores fardados, inclusive uma que foi esplendorosamente arremessada por um “batateiro” do Colégio Agrícola: partindo do canto do viaduto da Venâncio Aires (próximo ao Hotel Itaimbé), encontrou lá do outro lado uma bela acolhida num capacete branco. Diga-se de passagem, desde aquele dia considero esse arremesso a tradução mais literal da expressão “tiro e queda”.

Mais tarde, naquele mesmo dia, só não apanhamos de novo no cruzamento da Acampamento com a Astrogildo (onde era o terminal da linha Campus) porque havia muita gente para testemunhar – embora nos iludamos ainda hoje que fomos salvos pela nossa bela interpretação do Hino Nacional sentados no asfalto. Alguns dias depois, porém, o manto da noite serviu de esconderijo aos criminosos que comandaram uma nova sessão de pancadaria na primeira quadra da Avenida Rio Branco, em frente à Catedral do Mediador. Nesse dia (quando levamos um bolo do Dante Ramon Ledesma) nem o Hino do Grêmio cantado pelo Lupicínio Rodrigues em pessoa nos salvaria.

Seguramos a bronca por uns quinze dias e depois o movimento minguou, ficando vivo na memória, em algumas fotos e no refrão “a RBS também é PDS” gritado quando a câmera do jornalismo da referida emissora desviou dos cacetetes que caíam no nosso lombo (embora houvesse na frase um erro, já que a polícia, nessa época, era comandada pelo PMDB). Ficou, também, a certeza de que o velho Einstein era, de fato, um gênio muito perspicaz.

Não sei se muita coisa mudou de lá para cá nas técnicas de “controle” de multidão. O sem-terra morto no ano passado e a apologia da morte contida nos brasões das tropas especiais (outra coisa não pode ser a profusão de caveiras e armas brancas que os compõe) não me deixam pensar assim. Acho, porém, que pelo menos entre a maior parte dos soldados existe a consciência de que são trabalhadores (a sua atuação na recente derrota aos planos do governo Yeda apontam nesse sentido) e que a estrutura também lhes é opressiva, com riscos inversamente proporcionais aos privilégios reservados para poucos oficiais.

Enfim, espero não ver os amigos de meu filho sentados à mesa como minha mãe viu naquele dia o (hoje) meu compadre Clayton, com um enorme roxo a adornar-lhe a boca do estômago, resultado do forte impacto da ponta de um cacetete. Afinal, homens e mulheres, independentemente do que vistam, precisam bem mais do que uma coluna vertebral para serem verdadeiramente seres humanos.

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