Senhor e senhora Cordoni – por Luciano Ribas
Quem conhece São Pedro do Sul certamente lembra do Hotel e do Bar Cordoni, bem em frente à praça, pelo lado oeste. O bar já fechou há anos, dando lugar a uma farmácia, estabelecimento sem graça que em nada lembra a alegria que antes havia ali. O hotel, marcado pelo tempo, segue aberto, embora seus dias pareçam contados.
Seus proprietários eram um casal, coincidentemente chamados Ivo e Iva. Ele, Cordoni, ela, Ferrari Simon, irmã do meio da minha Vó Dite. Desde sempre – o que para mim significa desde que eu tenho alguma memória registrada – trabalharam com eles a Dica, a Tilinha e a Nita (já falecida), um trio que esbanjava fidelidade ao lugar para o qual dedicaram praticamente toda a vida.
Acho que quem conheceu essa “configuração” concorda que o Hotel e o Bar Cordoni nunca foram exatamente uma empresa. Sem exageros, era uma instituição, uma referência cultural e identitária para são-pedrenses e agregados, um lugar que ligava gerações através da combinação bife-batata-frita-sorvete-bom-humor.
O proprietário, tio Ivo Cordoni, era uma figura ímpar, uma pessoa que combinava bondade absoluta com bom humor constante. Um gozador, mas não um tosco, pois havia muita sutileza e inteligência no seu jeito de levar a vida, algo muito bem exemplificado na história que segue.
Certa vez, uma dessas instituições esnobes “de sociedade” promoveu um jantar para arrecadar fundos para alguma coisa (o que, não importa, pois o que certamente interessava era a oportunidade para as senhoras de boa família tirarem do armário o então badalado casaco “Pólo Norte”). Ao tio Ivo, claro, coube uma determinada quota de convites a serem vendidos, com os quais ele deveria “entupir” se não conseguisse passar adiante.
Não sei se ele tentou vender algum e não conseguiu ou se já estava com o plano elaborado, mas o fato é que ele pagou todos os convites do bolso; depois, mandou entregá-los na zona da cidade, um para cada menina, com ares de convidadas especiais.
No dia do evento, entre a dita “gente de bem” começaram a chegar as moças, muitas delas apreciadas e frequentadas por alguns dos presentes. Um escândalo, um ultraje, uma profanação, da qual ninguém entendia a origem. O espanto era tanto que uma das boas senhoras, arrasada, chegou até minha tia e disse “que horror, Iva, todas essas putas aqui no jantar!”. A tia Iva, uísque na mão e talvez consciente de quem era o autor da proeza, devolveu ironizando os hábitos da boa sociedade: “Olha, Fulana, aqui uma puta a mais ou a menos não vai fazer muita diferença”.
Noutra oportunidade, o tio Ivo e a família dirigiram-se ao clube da cidade. Ele, a tia Iva, os dois filhos e a Marisa, uma menina negra que foi adotada como filha. No auge do preconceito racial, o porteiro não quis deixar a Marisa entrar, simplesmente porque era negra – um fato triste, mas muito comum nos clubes até meados dos anos 80. O tio Ivo não teve dúvidas, ou entravam todos ou ninguém mais frequentaria o clube, e retirou-se. A direção preferiu mudar a regra do que enfrentar o Ivo Cordoni e acabou de vez com as restrições raciais – ao menos com as formais…
Para a mesma Marisa, a Iva e o Ivo Cordoni inventaram uma espécie de Pró-Uni com quotas raciais, décadas antes do presidente Lula fazer o mesmo e dar oportunidade a milhares de excluídos de freqüentarem uma universidade. Formou a Marisa do mesmo jeito que o Biga e a Bete, seus filhos biológicos.
Há alguns anos faleceu o tio Ivo e, na semana passada, a tia Iva também nos deixou, depois de curvear a morte durante anos. Naturalmente, deixou a todos tristes pois, como assinalou sua filha, o desaparecimento dos dois “marcava o fim da era Ivo e Iva”, um tempo em que as pessoas eram melhores, mais humanas e menos insensíveis, uma época onde talvez não fosse negado o direito de duas pessoas que viveram unidas por toda a vida descansarem juntas na eternidade.
Se meu fosse, eu doaria o histórico prédio do Hotel Cordoni para nele o município de São Pedro fazer um museu, uma escola ou qualquer outra coisa que mantivesse viva a memória do senhor e da senhora Cordoni. Dinheiro e patrimônio são bons, mas eternizar a presença de uma pessoa com absoluta certeza tem mais valor. Mas isso não compete a mim julgar ou decidir, embora a opinião seja livre. E a minha é que seria, sim, possível não matar de vez a era Ivo e Iva Cordoni em São Pedro do Sul.
Conheci o Sr. Ivo Cordoni, em São Pedro do Sul, quando, eu funcionário da Souza Cruz S. A., pernoitava no Hotel Cordoni, de 15 em 15 dias, sempre às segundas feira. Era uma figura marcante. Como bem descreve em seu comentário, Claudemir, Seu Ivo, como o chamávamos, era bem humorado, otimista, sempre disposto a servir a todos, com rapidez e eficácia, dando ao seu ramo de negócio, uma conotação de família. Lembro, que à hora das refeições, a gente ia até a cozinha, falava com as funcionárias e pedia aquilo de que mais gostávamos. Elas, gentilmente, sempre de acordo com treinamento recebido do Sr. Ivo Cordoni, nos atendiam, com carinho e dedicação, tal como se estivéssemos em nossa casa, sob cuidados de nossa mãe. Muito bom relembrar momentos que desfrutamos junto ao senhor Ivo e sua esposa, dona Iva. Abraços e parabéns pelo seu lindo texto. DPaim
Eu estou morando no Hotel cordoni, curso Filosofia na UFSM, sou de São Pedro do sul mesmo e escolhi este lugar pois sabia do valor historico-cultural que bem como vc disse leva a uma época ” onde os pessoas eram mais humanas”. Adoro este lugar e quero morar qui qte me formar, pois aqui tenho tranquilidade, paz e muita hospitalidade, hospitalidade, tal que deveria ser seguida a todos habitantes desta cidade q a muito deixou tais valores.
oi Luciano!!!!
Infelizmente fiquei sabendo da morte da D.Iva lendo tua crônica!!!!O que me deixou muito triste!!!!
Moro em Santa Maria vários anos!!!
Fui praticamemte criada junto com a Beti, minha juventude foi vivida no “bar do seu Ivo”!!!!!
Concordo contigo ,não da pra deixar passar em branco quem conviveu com o casal e os filhos!!!
Hoje o dia ficou mais triste!!!abraços
Não sou entendido no assunto, mas a mim pareceu uma bela crônica social, expondo claramente as hipocrisias da sociedade, entre outras coisas. Esse Sr. Ivo deve ter sido uma bela figura humana.
Mais uma vez, parabéns ao Luciano.
Ainda não sei por quê o tempo pretérito é sempre mais doce, pois o presente – como chocolate meio-amargo – é algo que poucos sabem saborear. Tenho que aprender.
Além de amigos de meus pais, IVA e IVO gozaram também da felicidade de viverem numa época de fraterno e verdadeiro convívio entre as pessoas daquela Cidade. Quem sabe um dia posso experimentar algo parecido…
Fui eu quem quis formalizar a locação com D. IVA para abrir meu escritório, logo após a graduação. Para ela era pura bobagem!
Abraço a todos, em especial à D. SUELI, HAROLDO e RITA e ao LUCIANO.