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O Guarda Belo Rock – por Pylla Kroth

Foi nos bares da vida, em troca de comida, bebida, cama e fumo que comecei minha vida de cantor e cantador. Mais tarde, a coisa foi crescendo e, mesmo com o descrédito de muitos, construímos um trabalho “cascudo”, sólido e palpável na sua forma de expressão artística.

Às vezes, me “abanco” sozinho para rememorar nossas façanhas e sinto uma grande satisfação e gratidão por termos feito tudo o que fizemos, e como fizemos. Éramos astutos mesmo. Nada nos impedia de realizar nossos sonhos, éramos um bando, muitos loucos, muitos outros, e quando isso acontece não existe sonho que não se realize.

Tempos difíceis aqueles anos de outrora, sem informática, sem celular, minha linda juventude foi criada numa égide de pouca informação e muita cobrança dos pais e familiares e da própria sociedade. Errar era quase inaceitável, ao contrário dos dias atuais em que basta apertar uma tecla do computador ou refazer a ligação para o número digitado errado. Lembro-me dos “telefones de contatos”, fornecidos para fecharmos os shows em cidades do interior. Sim, pois poucos tinham o famoso número da CRT, era um privilégio de poucos no interior. Ligávamos para o número para falar com fulano e ouvia-se a pessoa aos berros chamando o vizinho pela janela dizendo “É uma ligação no telefone pra ti, venha rápido” (risos).

E assim, sem conhecer pessoalmente o interessado e apenas na palavra íamos nós, numa trupe de oito ou dez pessoas até a referida cidade, sem maiores informações que nos dessem garantia. As tratativas para os shows eram meio que no “fio de bigode”. Não me lembro de alguma vez termos dado com “os burros n’água” como diz o ditado.

Foram centenas de cidades. Saíamos depois do meio-dia, às vezes até pela manhã de Santa Maria e voltávamos em algumas ocasiões até três dias depois. Íamos de ônibus de linha, às vezes alugados, de carona, no “dedão”, em caminhões-baú com as portas traseiras semi-abertas para que pudéssemos respirar e, certa vez, fomos até de trator por alguns quilômetros para completar o trajeto distante no interior gaúcho.

As lembranças mais bacanas são mesmo as das apresentações em bares. Às vezes, terminava a noite numa baita confusão por conta do volume alto dos amplificadores, bateria ou pela voz de quem vos escreve. A vizinhança fazia a denúncia e estava feito o “furdunço”. Homens, fardas, cacetes e camburões encerravam a noite. Muitos foram os bares que inaugurei, mas em muitos fiz a última noite de vida dos locais. Inúmeras foram às vezes em que a banda ia parar no plantão das delegacias. O crime era o barulho alto. Fazia parte do show.

Numa ocasião, fomos inaugurar um bar e lá pela metade da festança com o público já “pra lá de Marrakesh” chega o pelotão da polícia e vai adentrando o bar em direção ao palco, logo percebi que coisa boa não era, mas continuei cantando, minha banda fez de conta que estava tudo normal. O capitão e mais três soldados se aproximaram mais e mais, deixando outros dois “Pedro e Paulo” lá na entrada como quem diz aqui ninguém mais entra e ninguém mais sai. Quando chegaram bem pertinho da banda, o guitarrista, todo eufórico, com um litro de uísque na cabeça e se achando o Jimmy Hendrix dos pampas vai de encontro ao capitão, vira-se de costas, ajoelha-se e começa executar seu solo com a guitarra na nuca, vira-se novamente pro guarda e atraca-se de dentes nas cordas, para o espanto da autoridade que até hoje não sei o que pensou.

Eu, repentinamente, me dirijo até o outro guarda da ponta do palco e levo meu microfone até ele cantando, agora com a banda numa dinâmica baixinha, no ouvido dele, uma canção que dizia: “Declare guerra a quem finge te amar, declare guerra, a vida anda ruim na aldeia, chega de passar, ô-ô-ô, a mão na cabeça de quem te sacaneia”! O guarda não se conteve e começou a sorrir, olhando para o seu capitão que a essa altura dos fatos já estava até dando uns tapinhas na guitarra. Os dois outros guardas mais ao meio, as moças que dançavam na frente da banda trataram de hipnotizá-los como cobrinhas ninjas num bailado sensual. Foi quando o guarda tomou meu microfone cuidadosamente e, sem a banda parar de tocar, cantarolou em cima das notas da música: “Fomos chamados até este baile porque o volume estava alto demais, mas agora está um volume bacaninha e peço a esse grupo espetacular que não aumentem o som, para não nos causar mais problemas, a gente vai ouvir mais uma e vamos embora, obrigado por nos dar o prazer de entrar na festa. Boa noite a todos!” (risos). Foi aquele aplauso do público. Os guardas acariciados agora por todos foram se retirando do recinto para o espanto do dono do bar que assistia a tudo por detrás da copa, num misto de terror e alegria. Bastou os guardas se mandarem e o volume voltou a pegar, até o dia amanhecer.

Dias atrás, estava voltando de uma viajem e parei em um posto de gasolina para abastecer e um sujeito, aparentando uma idade bem mais avançada que a minha, se aproximou e foi perguntando: “Você não é cantor?”. Respondi afirmativamente sem me surpreender, pois esta pergunta me é feita com muita frequência, talvez pela aparência, “magrão de cabelos longos”, alguns dizem até que sou “a cara do tal Rock ‘n’ Roll”. Ele então me confessou: “Deixa-me te dar um abraço, rapaz! Eu sou um dos soldados que entrou naquele bar em que tocaste lá no interior, há muito tempo, e que a polícia entrou querendo acabar com a festa devido uma denúncia daquele povo chato daquela cidade. Na segunda-feira, depois do incidente, fui transferido de lá e fui parar em outra cidade. Na época fiquei furioso, mas não fosse aquilo tudo eu não teria conhecido minha mulher, que encontrei nesta outra cidade e fui me lamentar do ocorrido na cidade de onde fui transferido. Hoje somos casados, pais de três lindos filhos e com muito orgulho tenho um neto músico e roqueiro que é a sensação do momento no centro do País. Posso tirar uma foto contigo? Ele te conhece pela história que contei a ele.”

Vejam bem… Esta é apenas uma das histórias que às vezes me pego rindo e sorrindo a toa para o espanto de quem eventualmente está ao meu lado. Ainda escreverei um livro, ah se escreverei! O que seria de mim se não fossem minhas lembranças dos tempos de vida que vivi no rock? Ainda canto “e hei de morrer cantando”, pois assim “me disfarço e não canso de viver nem de sonhar”.

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