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Os “Tios Paulo” do Brasil – por Débora Dias

“Triste sociedade que não consegue respeitar e cuidar de suas pessoas idosas”

A cena estarrecedora da sobrinha que leva o tio morto até uma instituição financeira para assinar um contrato de empréstimo, a qual chocou todo Brasil, nos dá dezenas de lições e alertas sobre a violência contra pessoas idosas.  Vou referir alguns pontos para reflexão e debate.

Juridicamente falando, temos inúmeras questões, dentre estas, quais crimes teria cometido Érika, sobrinha do Tio Paulo (Paulo Roberto Braga, 68 anos), mas uma coisa é certa, naquele momento, em que ele é carregado morto, em uma cadeira de rodas, dada até mesmo água para seu cadáver, Tio Paulo não existia mais, o idoso não estava mais ali, somente seu cadáver.

Então, das ações de Érika, a sobrinha, ele não era mais vítima, poderia ter sido vítima anteriormente, de inúmeras violências, as quais não sabemos. Aliás, isso nos remete a tantas pessoas idosas que são vítimas de infindáveis violências, todos os dias.

Nesse sentido, conforme a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, somente nos três primeiros meses de 2024, teriam sido registradas 42.995 denúncias de violações contra pessoas idosas. Na DPICOI (Delegacia de Proteção ao Idoso e Combate à intolerância) até meados de abril desse ano já tínhamos mais de 600 ocorrências

O “tio Paulo”, ou o cadáver do “tio Paulo”, dentro da instituição financeira, naquele exato momento, não era mais vítima de nenhum crime. Poderíamos discutir o delito de “vilipêndio a cadáver”, art. 212 do Código Penal, mas é discutível, no caso, porque exige o dolo (intenção) de menosprezar, ridicularizar, não estou certa que essa era a intenção da sobrinha.

Mas, enfim, o que é certo, é que ela desejava o dinheiro do empréstimo, que segundo ela seria para reformar o lugar terrível que ele estava morando, uma garagem, conforme imagens divulgadas e, comprar uma televisão, entretanto este álibi cai por terra, já que o tio Paulo estava morto, não teria porque fazer uma reforma na garagem para ele habitar, nem iria assistir programas televisivos.

Despertou-me, também a atenção o fato das pessoas idosas, e já sabíamos disso, pelo número de registros existentes na DPICOI, serem usadas para se obter lucros, dinheiro, é terrível. A imagem do idoso, na carreira de rodas, dentro da instituição financeira, escancara de forma irretroativa, a realidade sem filtro, de como essas pessoas são objetos manuseados para se obter dinheiro fácil.

Nessa perspectiva, vemos familiares, aproveitadores, agentes (alguns) de terceirizadas de instituições financeiras, braços das instituições financeiras, que sem qualquer escrúpulo, aproveitam-se da vulnerabilidade da pessoa idosa para de maneira ardilosa tomarem seu dinheiro.

Não existe outra palavra que  não seja tomar mesmo, tomar o dinheiro, através de empréstimos “facilitados” comprometendo seus proventos, levando ao superendividamento, fora os golpes explícitos, os estelionatos praticados, estes últimos por organizações criminosas muito bem articuladas em todo Brasil.

Nossa sociedade é cruel, maltrata todas as pessoas que estejam por algum motivo em situação de vulnerabilidade. Com a pessoa idosa não é diferente. Estranho que essas pessoas que se acham espertas o suficiente para abusar da confiança da pessoa idosa acreditam que não vão envelhecer e que, se assim continuar, tem uma grande probabilidade de, na velhice, encontrar alguém tão “esperto” quanto elas. Só não envelhece quem morre antes.

Na DPICOI temos dezenas de ocorrências de inúmeros tipos de delitos contra idosos e idosas, mas os crimes contra o patrimônio, associados a outras violências, se sobressaem; há o desprezo pelo que o idoso pensa ou quer, mesmo que não seja interditado, como se a velhice lhe retirasse automaticamente qualquer direito de manifestação de vontade.

Tio Paulo não sofre mais. O alarde todo da notícia só expôs um cadáver, entretanto há tantas outras pessoas idosas que, nesse exato momento, sofrem todo tipo de violência, sem câmeras, sem mídia.

Triste sociedade que não consegue proteger e cuidar o suficiente de suas crianças, mas também não consegue respeitar e cuidar de suas pessoas idosas. Lutemos por um Brasil que respeite os direitos fundamentais da pessoa humana, em todas as suas fases, com todas as suas especificidades.

(*) Débora Dias é a Delegada da Delegacia de Proteção ao Idoso e Combate à Intolerância (DPICoi), após ter ocupado a Diretoria de Relações Institucionais, junto à Chefia de Polícia do RS. Antes, durante 18 anos, foi titular da DP da Mulher em Santa Maria. É formada em Direito pela Universidade de Passo Fundo, especialista em Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes, Ciências Criminais e Segurança Pública e Direitos Humanos e mestranda e doutoranda pela Antónoma de Lisboa (UAL), em Portugal.

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