O apito do trem – por Luiz Carlos Nascimento da Rosa
Muitos amigos dizem-me que domingo é um dia chato, cansativo e, porque não dizer, absolutamente enfadonho. Dizem que domingo é um verdadeiro “porre”. Para estes amigos a travessia completa do domingo é extremamente lenta e mais parece à trajetória para a eternidade.
Eu não sei o que tu achas, mas eu tiro o domingo para conhecer, enfrentar e, por que não, afugentar os fantasminhas que insistem em quererem sobreviver nas profundezas dos porões de minha alma. Na esteira do intimismo de Clarice Lispector poderia dizer que é um bom dia para dialogar com meus medos bobos.
Despertei muito cedo neste domingo. Transgredi alguns desejos e, corajosamente, saltei abruptamente de lençóis macios e cheirosos, com restos de aromas e ruídos de amores deliciosamente produzidos no ontem. Meu corpo e meu cérebro despertaram para a vida de um domingo onde os pingos de chuva davam um entorno estético para os límpidos e transparentes vidros das janelas que se punham majestoso frente as minhas irrequietas retinas. Nos rasgos de espaços, com o mundo exterior, que as janelas propiciavam só vislumbrava névoas e líricas gotículas de água de chuva. Os elementos pictóricos que compunham este meu tempo de domingo formavam uma estética tela que testemunharam minha irresponsável coragem em abandonar meu afável e delicioso ninho.
O bairro São José, se instituiu como um mirante e porto a partir do qual meu ser revela-se e, amalgamado aos mais sublimes sentimentos humanos, narro.
Estava absorto em meus pensamentos, tentando ajeitar minhas ideias e garimpando palavras para transformar estas ideias em um corpo de texto e -, eis que, “derrepente não mais que derrepente”, desperto para a vida real pela harmonia do apito de um velho e antropológico trem.
Literalmente o lírico e harmônico apito do trem despertou-me e produziu uma parada na viagem que estava fazendo pelo universo complexo de minhas ideias e pelo meu paradoxal e infindo mundo interior. O trem com o seu sonoro anunciar, neste domingo, remeteu-me para a histórica e inexorável estação do tempo.
Provavelmente isto tenha ocorrido porque eu tenha uma relação quase que “umbilical” com o trem, seu apito e as linhas paralelas por onde ele desliza em busca de suas múltiplas e variadas estações.
Linhas estas que parecem comprovar aquela hipótese matemática que diz que duas paralelas encontram-se no infinito. Eu vislumbro as linhas de trem apontando para o infinito.
O trem, seu apito e suas inorgânicas, mas líricas linhas paralelas fizeram-me despertar para os movimentos produzidos na e pela vida. Viver intensamente o presente, revisitar o passado e dialogar, a partir destes contextos espaço-temporal, quais as possibilidades que poderão ser gestadas para saudável futuro.
Filosofando um pouquinho diria que possuo uma relação ontológica com o contexto que circunscreve o mundo concreto do trem.
Afirmo que possuo uma relação ontológica com o mundo do trem, pois minha mãe pariu-me em frente a uma linha paralela do trem que aponta para o infinito. Nossa modesta, mas fraterna casa ficava numa ruazinha paralela a uma linha férrea. Minha ruazinha não apontava para o infinito, mas eram infinitas as possibilidades de travessuras que nos viabilizava.
Aprendi a andar, a falar, jogar bola, jogar bolita e erguer pandorga na ruazinha que é uma eterna companheira do trem, suas linhas paralelas e seu antropológico apito.
As paralelas linhas do trem eram, para a gurizada da ruazinha, o caminho para o açude do frigorífico. Nossa secreta sede campestre. Maravilhosa piscina coletiva. Desnudos como viemos ao mundo fomos, na prática, aprendendo a nadar.
Enquanto íamos refrescando e banhando nossos corpos, ao mesmo tempo, estávamos lavando a alma. Sem ter consciência da importância de nossos libertários atos estávamos preparando uma relação de prazer com as coisas simples da vida. Fomos construindo as bases psicológicas para mantermos uma relação de sanidade diante das adversidades cotidianas que a travessia da vida poderia, num futuro distante, apresentar-nos.
O trem, seu apito e suas infinitas linhas paralelas foram definindo nossas formas de ser. O contexto do trem deu conteúdo e forma para nossa leitura da viagem que empreendemos no mundo concreto da vida.
Domingo nada enfadonho. Dia em que o velho trem insiste em apitar e fazer-me refletir sobre o magnífico banquete existencial.
Jean-Paul Sartre, filósofo e militante francês, afirmava que a essência do ser é sua existência e a “consciência é a revelação-revelada dos existentes”. Assim o trem, seu apito e o encantamento das suas linhas paralelas que apontam para um horizonte infinito foram revelando-me as alternativas possíveis para o caminho futuro.
Todo trem possui suas estações que vai anunciando sua chegada através de seu apito. Nas estações o trem se recarrega dos humanos e do humano. Todo trem trafega em suas paralelas que possuem um “fim de linha”. Apesar de possuir um fim de linha o trem insiste no seu andar majestoso. Ao saber de sua passagem através de seu apito, o trem sublimou-me para o encantamento diante das coisas da vida e do eterno movimento de minha travessia.
Domingo singular. Fiz de minha viagem interior uma viagem pelas paradas do tempo. O culpado é o trem e seu harmônico apito.
O lindinho e delicado apito do trem, que apesar das adversidades econômicas que o sistema impõe, insiste em andar sobre suas paralelas que apontam para um horizonte infinito, neste chuvoso domingo construiu um momento e um espaço para que eu pudesse tratar e emancipar as coisas que dizem respeito ao interior de minha alma.
Parafraseando Sartre eu diria: rompa com o tédio e faça sua travessia, reveja as estações que o tempo lhe propiciou em sua trajetória pelo caminho da vida. Se não tiveste o trem, como eu, para adoçar sua viagem, invente outro mote.
Isto são coisas de um domingo onde o tempo foi banhado por um simplesinho apito de um persistente e cansado trem. Eu submerso neste contexto, reinvento meu tempo, ganho vida e prazer sendo chamado por esse antropológico apito do velho e companheiro trem.
Enquanto meu lindinho e delicioso amorzinho encontrava-se entregue aos braços de Orfeu, possivelmente sonhando com uma sociedade formada por seres humanos sem estranhamentos e sem exclusão -, o eu lírico foi recarregando suas baterias revisitando minhas andanças no tempo e sonhando acordado; com um despertar imaginativo, num domingo chuvoso, desperto por um generoso e singelo apito de um trem. Uma Ode a chuva, ao domingo, aos universais amorzinhos que estão dispersos no coração humano e, ao simples, idiossincrático e lindo apito do trem.
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