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Quem reinventa Santa Maria está nas ruas – por Atílio Alencar

Dos tantos desdobramentos que a tragédia de um ano atrás legou à Santa Maria, haverá poucos que nos atreveremos a qualificar como positivos. Entre os raros que merecem esse adjetivo, figura o fenômeno sintonizado com uma tendência mais ampla no país: a redescoberta dos espaços públicos como locais de cultura e lazer na cidade. Não que, em algum momento, as pessoas tenham abandonado as praças e parques.

Mas a agenda cultural, que parecia haver se deslocado para o confinamento dos espaços de acesso restrito – restrições essas impostas pelo custo de ingresso e consumo, pela capacidade limitada de comportar pessoas ou mesmo pelas barreiras simbólicas que delimitam o ‘perfil’ do público – reencontrou nas áreas de convívio urbano seus ambientes mais democráticos. E isso, apesar da ausência insistente de políticas oficiais de incentivo focadas na estrutura e programação desses espaços.

Verdade seja dita: o tratamento relapso que a administração municipal dispensa às praças, parques e aparelhos culturais de Santa Maria – e a condição de constrangedora decadência em que se encontram alguns espaços – não é obra exclusiva da atual gestão. Há muito, a cidade sofre com a falta de um planejamento urbano que leve em conta as demandas de lazer e cultura da população, cedendo de bom grado à prerrogativa do acolhimento coletivo para os empreendimentos privados.

Num domingo de sol, o passeio de milhares de jovens hesita entre as insossas áreas de alimentação dos shopping centers locais e a precariedade do único parque do centro da cidade, o Itaimbé; num dia de chuva, a segunda opção é simplesmente eliminada, por conta do córrego que ressurge das crateras e da ausência de áreas cobertas entre a antiga ferrovia e a Avenida Dores.

Ali mesmo, no Parque Itaimbé, há pelos menos dois pontos que permaneceram desativados durante anos, proscritos por enigmáticos laudos técnicos que mais pareciam frutos da especulação arbitrária do que documentos capazes de mapear e indicar soluções estruturais. O Centro de Atividades Múltiplas Garibaldi Poggeti – conhecido popularmente como Bombril – e a Concha Acústica, ambos praticamente condenados por avaliações em gestões anteriores, voltaram apenas recentemente a ser tema de aparente e propagandeada preocupação da prefeitura.

A Concha, misteriosamente e sem nenhum tipo de investimento, foi reavaliada como apta a receber eventos novamente – e desde 2011, se não me falha a memória, voltou a sediar shows organizados sem nenhum apoio oficial -, desmentindo a tese de que estaria desabando. O Bombril, atualmente em ruínas, é o centro de um imbróglio burocrático que não consegue sequer firmar uma licitação pública para reconstrução com critérios exequíveis.

De uma ponta a outra do parque, são comuns os quiosques e salas em desuso ou ocupados por entidades que atendem sabe-se lá quais interesses, já que não há transparência nos procedimentos de concessão desses espaços. (Só o que não é comum mesmo no Itaimbé são banheiros, itens considerados desnecessários ou inviáveis pela gestão atual e todas as anteriores, pelo visto)

Além desses, em estado de eterna latência, estão a antiga Gare da Estação e sua reforma completa que nunca se concretiza, a Casa de Cultura com sua agenda sonolenta e obras que não saem do papel, o megalomaníaco projeto do Centro Desportivo Municipal (o Farrezão) sem prazo para conclusão, a tal pista que o prefeito teria prometido em reunião com a Federação Gaúcha de Skate, a possibilidade de um resgate público do Parque Náutico que nunca mais foi citado, a ampliação do Museu de Artes e tantos outros projetos que só vingam na teoria, coincidentemente durante as campanhas eleitorais ou em posses de novos secretariados.

São bandeiras fáceis de erguer e que merecem juras de amor e dedicação no horário gratuito dos partidos políticos, mas levianamente abandonados em seguida, quando, talvez, percam a prioridade orçamentária frente a outras obras de maior apelo demagógico.

Enquanto isso, na contramão do pessimismo que esse cenário poderia sugerir, uma multiplicidade de iniciativas ocupa a cidade, cumprindo muitas vezes um papel negligenciado pela máquina administrativa. São jovens organizados em grupos e contando com recursos precários que protagonizam as batalhas de MC’s, pequenos festivais de música, saraus literários, instalações visuais, feiras de escambos, peças teatrais ou qualquer outro pretexto digno de mobilizar pessoas. E o fazem sem um centavo de investimento dos cofres municipais, e muitas vezes sofrendo inclusive com a sabotagem do poder público ou com as ‘ações preventivas’ da polícia – ao mesmo tempo em que o único mecanismo de incentivo à cultura de Santa Maria, a LIC Municipal, segue funcionando com um modelo arcaico que facilita o tráfico de influências e autoriza a liberação esdrúxula de recursos para reformas em templos religiosos.

Em entrevista recente, o prefeito César Schirmer, num prenúncio da nova estratégia adotada pela assessoria do governo, enfatiza a necessidade da reconstrução de Santa Maria. Difícil captar o real sentido dessa afirmação, num contexto de obscuridades envolvendo as próprias relações da prefeitura com a situação que condicionou a tragédia do dia 27 de janeiro. Entretanto, caso o poder público quisesse de fato se fazer sensível à reinvenção da vida depois da tragédia, deveria prestar atenção no que estão fazendo esses jovens – eles sim, agentes de uma reconstrução afetiva da cidade. Mas não para criminalizá-los, nem para impor-lhes o limite da burocracia. Para aprender, mesmo.

Quem sabe o que Santa Maria precisa não está nos gabinetes, e seria justo abrir mão da prepotência para entender isso.

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