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Estação da Alma – por Márcio Grings

Outra vez ele está à beira do precipício. Inclina-se na beirada e olha pra baixo com um temor evidente. Sempre se lembra de Chet Baker voando daquela janela em Amsterdã. O corpo esborrachado na calçada e o trompete longe dele, intacto na maleta ao lado da cama no quarto 210 do Hotel Prins Hendrik.

Como separar uma coisa da outra? Praticamente impossível. Chet se jogou ou foi jogado? De novo acorda com uma sensação de alívio. Outra vez quase caiu lá de cima. Na boa, um dia ainda vai se jogar, já que tudo não passa de um sonho, pode ser que saia flanando pelo ar e repouse sã e salvo nos cobertores. Falso temor, talvez seja esse o recado no pesadelo recorrente. Alguma bendita sacudidela o encorajando a pular do trampolim.

Nietzsche já avisava: “repara que o outono é mais estação da alma do que da natureza”.

E a natureza vive promovendo rupturas no outono. É só olhar pra fora. O sol, a lua, as folhas das árvores, as nuvens, o céu, as ruas, as pessoas, tudo parece imantado de melancolia e pequenos adeuses. Uma sensação de abandono permeia tudo, real e irreal. Como se um filete de neon emprestasse saudosismo a qualquer evento que desfile frente aos olhos daquele homem. Sensação de despedida, desencontro, desencaixe, a ferramenta errada tentando soltar uma engrenagem enferrujada, a bola que bate na trave, quica na marca da cal e salta pra linha de fundo. O copo trincado que espatifa na mão antes do primeiro gole, a sobremesa que escorrega mesa abaixo, a carteira que desaparece misteriosamente em algum buraco negro da memória.

Tudo culpa da alma que vive uma temporada fora de comunhão com o corpo. Espírito que anda avoado e displicente com a massa corpórea em que habita em sua turbulenta existência momentânea. De qualquer forma, precisa ajustar o prumo em plena temporada de caça ao fantasma de si mesmo. Trip rolando a mil, mas precisa fazer as pazes, nem que seja na marra. Ele sabe que pode retomar as coisas exatamente de onde parou. Voltar ao instante em que o céu estava claro e límpido, o leme mantinha-se firme sob seu controle e ações, propulsionando as velas da embarcação até o suposto destino correto. No entanto, ao avançar no alto mar, o curso foi alterado. Então, nuvens engoliram o céu e a cena mudou de figura. Se houve equívocos, nada de meter no rabo da tripulação ou na droga do acaso.

A estação da alma é o momento de jogar dados consigo. Da próxima vez, decide: – sim, vai se atirar do precipício. Bater de cara no chão e ver o que acontece. Quem sabe não descobre como quebrar esse feitiço diabólico que o espreita sorrateiramente.

Próxima noite, ele vai se jogar.

 

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