Artigos

A viagem do barqueiro – por Márcio Grings

márcioNa mitologia grega, Caronte trabalha a serviço de Hades, deus do mundo inferior. Ele é um barqueiro que carrega as almas dos recém-mortos sobre as águas do rio Estige e Aqueronte, numa espécie de canal que divide o mundo dos vivos do mundo dos mortos. E como falamos em lendas, essa imagem pode ser conectada diretamente aquilo que está estampado na capa de “The Endless River” (O rio sem fim), novo álbum do Pink Floyd. As dezoito faixas reveladas foram moldadas a partir das sobras e retalhos das gravações de ‘Divison Bell’, disco lançado pela banda inglesa há exatos vinte anos.

Na imagem, visualizamos uma criação do jovem artista egípcio Ahmed Emad Eldin. Lá está um barqueiro vestido com uma camisa branca, em pé, peito aberto, calças confortáveis, vagarosamente remando uma pequena embarcação. Só que o seu bote não está flutuando em um rio ou mar, esse barquinho de madeira navega entre nuvens. E enquanto a figura humana avança nesse rio sem fim e surreal, aparentemente não há nenhum corpo desfalecido a bordo. No entanto, tal como Caronte, talvez o barqueiro esteja em busca de um último sopro de existência .

Voltando à história do Pink Floyd, como sabemos, Roger Waters, baixista e principal compositor da banda esteve nas trincheiras até “The Final Cut”, de 1983. Desde “A Momentary Lapse of Reason”, de 1987, quem comanda as ações no grupo é David Gilmour. Nessa nova etapa, o guitarrista conta com o apoio direto dos outros dois integrantes remanescentes: o baterista Nick Mason, e o então repatriado tecladista Rick Wright, esse último falecido em 2008.

Como já foi dito em comunicados oficiais, “The Endless River”, além de pagar tributo ao pianista morto, é um disco que aglutina sobras e recortes de ‘Divison Bell’. Tanto que parte da sonoridade deste álbum pode ser facilmente percebida. Mas se ‘Division Bell’ – um disco que eu adoro -, em dados momentos incide perigosa e deliciosamente pelo pop (como em “Take It Back”, por exemplo), e na maior parte das vezes, apenas flerta com o progressivo, “The Endless River”, anunciado canto do cisne de uma das maiores instituições da cultura pop, embebe sem medo seu conteúdo no prog rock.

E o álbum começa muito bem. Dá pra dizer que “Things Left Unsaid”, “It’s What We Do” e “Ebb and Flow”, são interligadas como se essa trinca fosse um único tema instrumental. Guitarras guilmouristas, tímbrica cortante, teclados viajandôes e todas as tintas que tornaram o grupo mundialmente famoso. Em dado momento lembramos-nos de “Welcome To The Machine”, canção de “Wish You Where Here”, de 1975.

Mas também rolam alguns baldes de água fria. Não que tenhamos um fracasso total, bem pelo contrário, os amantes do bom rock progressivo irão se deliciar com “Sum” e “Skins. “Anisina” apresenta solos de sax, clarinete e um desempenho padrão Gilmour no encerramento. “Allons-y (2)” é disparado outro ponto alto do disco. Puro Pink Floyd! Em “Talkin’ Hawking”, a voz artificial do cientista britânico Stephen Hawking nos alerta: “abandonem a Terra ou seremos extintos”. Quase no final do disco, “Louther Than Words”, única música cantada do trabalho, nos lembra o quanto “Momentary Lapse of Reason” e “The Division Bell” têm lá os seus bons momentos. A letra é da escritora Polly Swanson, esposa de Gilmour.

Barry Nicolson do NME disse o seguinte sobre de “The Endless River”:

Anticlímax; coleção de outtakes interessante sobre certa perspectiva, mas insatisfatórios [quanto ao calibre da banda].

Já Michael Gallucci, do Ultimate Classic Rock falou de forma mais animadora e menos ácida:

The Endless River” soa como se fosse feito por uma banda em transição. E de certa forma, isso é muito bonito. Wright é um espírito etéreo [no álbum], flutuando pelas músicas com deslocamentos fantasmagóricos [do seu teclado].

Minha conclusão: “The Endless River” está definitivamente muito longe de figurar entre os melhores momentos do grupo. Trata-se de uma coleção de peças de música ambiental, esculpidas a partir de fragmentos abandonados. Isso fica muito claro. Em contraponto, enquanto avançamos em sua audição, podemos perceber traços inconfundíveis da sonoridade e da personalidade floydiana. E o Floyd foi uma das bandas que sempre transitou com propriedade dentro dessa moldura de música incidental, tanto que por algumas vezes, se arriscou valendo em álbuns conceituais onde há um predomínio e ênfase no instrumental. E o reflexo dessa experiência ainda é referência na história do rock.

Posso dizer que o disco mais me arrancou sorrisos do que me aborreceu. Bom, aqui quem fala é um fã confesso desse time. O Pink Floyd não é apenas uma banda de rock, há um conteúdo intelectual invejável diluído em todo o espectro de sua existência, resultando numa longevidade que ainda nos assombra.

Quanto ao barqueiro da capa, que nosso Caronte complete sua viagem, e assim, quem sabe, encontre o que está buscando. Existem rios sem fim que nos levam ao mais confortável dos lugares. Lembrei-me de uma canção de Joni Mitchell: “Somos poeira de estrelas / e precisamos retornar ao jardim”. Posso dizer que ouvir Pink Floyd sempre me lembra de que estou bem próximo ao meu quintal.

Artigos relacionados

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo