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Por favor, uma mesa en la calle – por Atílio Alencar

Viver numa região fronteiriça facilita algumas empreitadas que podem bem soar extravagantes para moradores de outras regiões. Ser gaúcho (quase) da fronteira, por exemplo, é uma condição que nos aproxima geograficamente dos vizinhos Uruguai e Argentina – embora a reivindicação bairrista que insinua afinidade maior entre gaúchos e hermanos do que com o restante do Brasil, muitas vezes, não passe de um subterfúgio racista e bastante colonizado, movido pelo encanto com os “ares europeus” de Montevidéo e Buenos Aires.

Não há de se subestimar, claro, o encanto que o ambiente e os costumes estrangeiros podem suscitar num visitante, ainda que de procedência vizinha. E ter a possibilidade de atravessar uma fronteira – mais do que política ou geográfica, sensível – é sempre uma experiência recomendável. Respirar em atmosfera estranha tende a ser um bom antídoto contra os preconceitos e a xenofobia, embora não haja garantias de eficácia em caso de mentes muito tacanhas.

Pois bem. Tudo isso dito, quero contar que dia desses cruzei a fronteira. Pela quarta ou quinta vez, fui viver a experiência do turismo precário e pouco especulativo em terras argentinas. Não que não tenha me gerado alguma satisfação o câmbio desigual (semana passada, apelando para cambistas clandestinos, era possível obter quase cinco pesos argentinos com um mísero real). Mas definitivamente, meus recursos não eram suficientes para decretar-me um rico temporário por conta da vantagem cambial. Vantagem pouca, mas curiosidade enorme. Além disso, havia shows em cartaz que eu queria ver e que me sairiam mais baratos em Buenos Aires do que em São Paulo.

Assim sendo, fui ouvir o tango.

Claro que é tentador contar dos atrativos metropolitanos para turista ver. Além de ser uma capital extremamente cosmopolita, Buenos Aires tem uma arquitetura fascinante e um circuito boêmio de causar inveja. Mas aí está um ponto em que, incomodamente, sentimos que o gozo turístico guarda um abismo enorme com a nossa realidade local. Claro está que a noite é também um produto no mercado, e que a profusão de bares e mesas na rua, dependendo dos preços praticados e dos códigos implicados, pode funcionar como filtro social. Mas a cultura evidente de viver a rua como ambiente de convívio, e não apenas como passagem nervosa entre o fluxo dos automóveis e dos anúncios luminosos, é algo que chama a atenção no cotidiano bonarense. Nada a ver com Santa Maria, nem com Porto Alegre, se pensarmos da perspectiva da gestão pública.

Em nossa cidade, parece que o cuidado com a etiqueta urbana – o que pode e o que não pode, segundo o código de posturas da cidade – obedece uma lógica quase irracional. Restritiva quase sempre; estranhamente permissiva em casos singulares. Bar com mesa na rua, por exemplo, pode e não pode: sem saber exatamente porque, nem quando nem onde, vez por outra podemos beber uma cerveja confortavelmente sentados à mesa em via pública. Ao dobrar uma esquina, porém, descobrimos que outros bares das redondezas não estão autorizados a oferecer o mesmo atrativo: a proibição tem delimitações que nem deus entende. Há quem fale em favorecimentos e sabotagens. Eu, por minha vez mais amargo, penso mesmo é em burrice e falta de visão.

Como bem disse um amigo dia desses nas redes sociais, é comum aos que podem fazer a travessia voltar com rasgados elogios à noite portenha. Regressos, lamentamos a melancólica diferença, a ausência de alternativas arejadas.

Em Porto Alegre, cidade outrora notória por suas zonas de intensa vida noturna, a possibilidade do convívio nas calçadas vem perdendo espaço para a especulação imobiliária. Os condomínios querem crescer sem obstáculos. Triste vitória parcial dos grandes empreendimentos contra estas pequenas células celebrativas que são os bares,  espécies de comunidades improvisadas em torno da alegria. Aqui em Santa Maria, com menos glórias passadas mas ainda assim nostálgicos do que nos faz falta, giramos tontos pelas calçadas na carência dos pontos de encontro ao ar livre. Podemos espiar o verão pelas vidraças, na clausura dos ambientes artificialmente climatizados. Mas sentar na rua para viver a noite, em geral, só se for na calçada, a arquibancada marginal dos notívagos.

Santa Maria, uma cidade com não sei quantas universidades e muitos milhares de jovens universitários. Todo mundo sedento por noite, andanças, encontros. Mas não. Sei nem dizer o nome do órgão municipal que através das seguidas gestões prefere nos negar o direito de um conforto modesto na rua. Também pudera: na assimetria entre os anseios festivos e o sádico proibicionismo, quem vence são as ocasiões de excesso prejudicial, em que por falta de onde ir, muitos vão ao asfalto que há, a mijar nos postes, amontoados numa só esquina eleita. E a solução surge na fórmula mágica da polícia, ora vejam.

E ficamos nós sonhando com as cidades da América hispânica onde sentar à rua para conversar com amigos não soa criminoso ou errado. Volta e meia, juntamos um dinheirinho e vamos gastar ali, aqui perto, o que poderíamos gastar aqui mesmo. Um dia, do jeito que a coisa vai, a última cidade da América Latina com bares de rua será um memorial a ser visitado pelas futuras e entristecidas gerações.

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