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Um Conto de Ano Novo – por Márcio Grings

Depois de cruzar a cidade com uma bolsa e violão atravessado nas costas, 40 graus e sol a pino queimando o lombo, não há grau de tolerância que resista a uma provação desse naipe. O suor escorre como manteiga derretida pela testa dele, deslizando pelo rosto e formando um pequeno córrego entre os olhos. Aquela foz de água salobre embaça os óculos, desvia o nariz, passa pela boca, inunda o pescoço e desce até o peito. A camiseta branca fica com uma mancha úmida bem no centro. A expressão de derrota no seu olhar é algo difícil de evanescer. Sem passe de mágica não há possibilidade de fingir, ainda mais depois de levar uma surra atrás da outra.

As contas não esperam, a namorada não existe mais, o emprego foi pro saco, ou seja, tudo deu errado nos últimos meses.  Restou o violão, as canções que sabe de cor, e um último recurso que possivelmente possa agir como um paliativo mediante a situação de desespero a qual se encontra: tocar em uma das praças centrais da cidade e, assim, contar com a compaixão humana para que sua caixinha encha de moedas e notas. Esse será o primeiro dia, e primeiras vezes geralmente não são nada fáceis. Longe disso, premières, um teste e tanto.

Tira a estante de partitura da bolsa, arma o treco bem na sua frente, e se posiciona de costas para um gigantesco pé de Flamboyant em flor. Coloca a pasta de letras na armação, e logo depois começa a afinar o violão. Olha a fonte da praça e pensa que tranquilamente poderia ficar de molho junto às tartarugas. Sente uma inveja danada daqueles bichos. Imagina-se boiando lá.

Um calafrio percorre sua espinha, por instantes acha que não vai conseguir tocar. Será que precisa aceitar aquele emprego numa loja de sapatos? A sombra do Flamboyant não ameniza em quase nada a sensação de abafamento. Uma daquelas figuras recorrentes em qualquer cidade do planeta se aproxima do músico. Com uma garrafa plástica na mão e cheirando a tonéis de pinga, esse homem que exala álcool pelos poros tasca um pedido:

– Sai uma do Cerejinha, aí ?

Diz aquilo e sai zoando como se fosse um palhaço que ri da própria piada. O músico fica nervoso e começa novamente a afinar o instrumento, ou melhor, desafinar, pois o violão estava perfeito.  Algumas pessoas se aglomeram a sua volta, uma espécie de pequeno público de desocupados e passantes que formam o princípio de uma audiência.

O homem da garrafa plástica começa a conversar com um engraxate sentado sobre sua caixa, isso bem pertinho do músico.

Bêbado: “Esse cara tá assustado. Não vai tocar”.

Engraxate: “Pois é. O sujeito tá arrodeando com aquele violão e nada”.

Bêbado: “Se sair algo, quer ver que vai tascar música de americano?”.

Engraxate: “Aposto um Xis como esse daí não vai fazer porra nenhuma”.

Ele ouviu tudo e se desestabiliza. Em consequência disso, não dá outra, o suposto músico não articula uma única nota. Aquele diálogo do mau agouro protagonizado pela dupla também acaba de vez com sua confiança. Ele perdeu. Virando o ano, aquele homem vai pegar a tal vaga na loja de sapatos.  Recolhe os apetrechos, coloca a viola no saco e cabisbaixo pica a mula daquele improvisado palco ao ar livre. O engraxate e o bêbado começam a rir da desgraça alheia.

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