#jesuischarlie!? – por Luciana Manica
Mesmo que essa simples expressão envolva muito mais que o tema proposto, não podemos deixar de nos questionar até que ponto vai a nossa liberdade de expressão.
Em francês Je Suis Charlie significa “Somos todos Charlie”, remetendo o apoio ao satírico jornal francês Charlie Hebdo que teve jornalistas dizimados por ataques terroristas ao fazer charge sobre Maomé semana passada.
Sátira é tida no dicionário como uma “construção poética, livre e repleta de ironia que se opõe aos costumes, ideias ou instituições da época (em questão)”. Teria sido poética a criação do chargista francês? Até onde uma caricatura pode ser feita de forma livre?
O diretor e chargista Charb, certa feita, em referência às ameaças de morte que sofrera de radicais islâmicos asseverou: “mas no Charlie Hebdo não degolamos ninguém com uma caneta”. Ouso discordar, você pode ceifar a vida de alguém com desenhos, palavras ou simplesmente ignorando-a. Se antes fazíamos “piadas” de negros, é porque “desconhecíamos” seus direitos.
A Lei dos Direitos Autorais (Lei 9610∕98) assegura que as paráfrases e paródias são livres, desde que não sejam verdadeiras reproduções da obra originária, nem lhe impliquem descrédito. A paráfrase seria a interpretação de um texto com palavras próprias, mantido o pensamento do original. Já a paródia é tida como uma imitação burlesca, irônica, um escrito satírico que imita uma obra literária.
A charge, o cartoon (cartum) e a caricatura são obras inéditas e originárias, mas recheadas de críticas e sátiras. A linguagem visual se destaca, mas pode ser tão carregada, que mesmo sem uma palavra escrita pode ofender um povo inteiro.
A ridicularização alheia e afronta a diferentes tradições tem que ter limite. É preciso observar a cultura de cada país. No Brasil não há espaço para um “humor” como o ocorrido no território francês. Podemos ser jocosos, mas respeitando a fronteira do bom senso.
Em verdade, temos que parar de rir da desgraça dos outros, vivências ou opções de sexo, cor ou religião. O riso alheio é fácil, insensível e por vezes ofensivo aos direitos da personalidade. Na nossa terra, Danilo Gentili erra quando humilha as pessoas e as conduz a uma situação de perda, como no caso da doadora de leite que ele chamou de vaca e outras coisitas mais. Essa pessoa foi ridicularizada em sua cidade, ficando impossibilitada de sair de casa, até chegar num quadro de depressão.
Não devemos exaltar o caricato, o ofensivo. Temos que respeitar o outro, a sua cultura. Tampouco a resposta de um erro pode se dar de forma desproporcional como a chacina vivenciada na França. A liberdade de expressão há de ser aclamada, assim como o respeito à criatividade do cartunista, mas tudo dentro de um princípio maior, da dignidade da pessoa humana.
A questão de ter "direito de falar, escrever ou desenhar" é mitigado quando fere terceiros. Respeito ao outro é base fundamental para se viver em sociedade. Não vamos longe, a corte francesa proibiu um anão de trabalhar sendo arremessado por um canhão, sob a alegação que feria a dignidade da pessoa humana. Agora aplaude quem fere a dignidade de uma cultura (sem defender um povo em especial, mas todos os povos).
Outro problema é julgar o mundo pela manchete. Danilo Gentili tinha direito de falar o que disse? Tinha e tem. Não existe censura prévia no Brasil. Um humorista que pratica auto-censura não consegue trabalhar. Obviamente foi processado pelo que disse. Não sei o resultado. E no primeiro grau a juíza determinou uma astreinte de 5 mil reais diários para a Rede Bandeirantes se não tirasse o programa Agora é Tarde do ar. Nenhum absurdo, tudo dentro do sistema.
Prenderam um humorista francês por incitação ao terrorismo. Escreveu um "je suis qualquer coisa" que por aqui foi tirado de contexto. Teorias da conspiração e culpabilidade do sistema capitalista financeiro internacional a parte (quando começam a falar nisto, a seriedade da conversa foi pelo ralo), o sujeito faz o Rafinha Bastos parecer o ministro Barroso. Tem oito condenações por anti-semitismo. Responde a processo por incitação ao terrorismo porque fez troça da decapitação de um jornalista americano. Fez gesto nazista em público. Estava proibido de entrar no Reino Unido. E ainda tem gente que não tem capacidade de encontrar a informação e coloca a culpa na mídia.
Talvez seja por aí. A questao é que se está ocidentalizando as culturas. O que não segue a regra do "lado de cá" é motivo de sátira ofensiva.
O "lado de cá" alega ser mais politizado e civilizado, mas comete atrocidades tão repudiadas quanto os "do lado de lá".
O famoso "clash of civilizations".
Alguns, que não abandonaram ainda os ideais do iluminismo, gostam do "temos que", do apelo a razão. Não funciona. Bem vinda seja a pós-modernidade e abaixo o Pollyannismo desenfreado. Todas as controvérsias serão resolvidas no fórum. O sistema ocidental funciona assim. Se os terroristas tivessem largado as armas, teriam direito a advogados e julgamento justo.
A resposta foi uma chacina a tiros de fuzil, algo inesperado. Esperava-se algum tipo de bomba. E não seria um argumento moral que impediria o ocorrido. E nem legal.
É a velha dicotomia: quanto mais liberdade, menos segurança. E vice-versa.