Sobre “Assim na Terra” e Luiz Sérgio (Jacaré) Metz – por Leonardo Foletto
Fazia acho que mais de ano que postergava esse momento, seja deixando as frases curtirem por dias, semanas e até meses na mente, porque cada página era uma tempestade de imagens a digerir, ressoar, refletir, viver e voltar a ler, seja com receio de acabar a “novidade” com o livro terminado, esquecendo de que, neste caso, definitivamente não estamos falando de algo que vá ficar esquecido num canto qualquer. Mas aí está: terminei a leitura do “Assim na Terra“, de Luis Sérgio (Jacaré) Metz.
É um tanto difícil escolher palavras pra falar do livro. Primeiro porque, diante da profusão de imagens poderosas e do domínio da língua presentes na prosa-poesia de Metz, qualquer frase que eu escreva vai parecer coisa de ‘guri novo’ que recém tá começando a escrever coisas como “A casa é bonita”. Segundo porque “Assim na Terra” é daqueles livros que é maior que uma simples narrativa, um romance, uma ficção, uma prosa poética escrita em português: “pertence àquela categoria que de obras que extrapolam a palavra escrita, simplesmente porque encerram mais coisas do que a palavra escrita pode conter em si”, como diz a resenha do site Posfácio.
Li alguma coisa daqueles citados normalmente como grandes escritores brasileiros – Machado de Assis, Mário de Andrade, Drummond, Graciliano Ramos, Leminski, Dyonélio Machado, Oswald de Andrade, Raduan Nassar, João Cabral de Melo Neto, Érico Veríssimo, João Antônio, Clarice Lispector e Nelson Rodrigues. Lamentavelmente não li “Grande Sertão: Veredas”, talvez o paradigma em romance produzido no Brasil, nem obras inteiras de Valêncio Xavier, Campos de Carvalho, Osman Lins, Jorge de Lima, Haroldo de Campos, Manoel de Barros, Hilda Hist e outros gigantes. Nesse recorte específico das minhas leituras e não-leituras, porém, “Assim na Terra” é suficiente para por Metz nesta lista dos grandes citada acima, especialmente no que diz respeito à experimentação de linguagem e em experiência de leitura. Nada contemporâneo, dos 2000 pra cá, parece chegar perto deste nível de complexidade, densidade, experimentação e multiplicidade de leituras possíveis que o livro permite. Nenhum dos 20 “melhores” jovens autores brasileiros selecionados pela revista inglesa Granta, para ficar numa seleção bastante divulgada (ainda que controversa, na minha e em diversas opiniões). Nem Daniel Galera, Carol Bensimon, Michel Laub, escritores hoje bastante conhecidos e comentados no Brasil.
Quem chegou até aqui na leitura desconfia, mas aos que não sabem: o autor de “Assim na Terra” é cria de Santa Maria, do caldeirão cultural prodigioso que a cidade ferveu no final dos 1970 e início dos 1980. Cursou agronomia e filosofia, mas se formou em jornalismo na UFSM. Trabalhou em A Razão. Fez parte do Tambo do Bando, grupo que revolucionou a música gaúcha dos 1980/90 ao aproximar a gaita e o violão da guitarra elétrica, dos teclados, da MPB e do rock. E, principalmente, por trazer letras mais urbanas, de denúncias sociais, contendo imagens surrealistas e às vezes irônicas, num cenário dominado pela lírica de louvação às coisas da terra, do gaúcho, chimarrão, cavalo, etc. Jacaré era o principal letrista do grupo, e de sua lavra saiu músicas como “Deixem Seus Olhos Fixos”, inspirada na fotografia que abre esse post, feita em 1987 por Luiz Abreu (este link explica a história da música com a foto).
Este cenário cultural em que Jacaré circulou é bem descrito no posfácio de “Assim na Terra” por Luís Augusto Fischer, professor de literatura da UFRGS e amigo pessoal do autor. Saliento: “vale acrescentar que Santa Maria foi muito mais que uma universidade, para ele e sua geração. Sendo uma cidade universitária interiorana, já por isso atraía, como ainda hoje atrai, milhares de jovens de um vasto raio de centenas de quilômetros. (…) E quem diz juventude diz invenção e ousadia, diz solidariedade e parceria, tudo isso temperado pelo contexto político da época: auge da ditadura militar iniciada em 64. (…) Sérgio Jacaré nadou de braçada nesse mundo todo, tendo sido uma liderança importante em seu contexto”. No plano da formação cultural, duas outras variáveis. Dada a proximidade de Santa Maria com o mundo hispano-americano (cerca de trezentos quilômetros), para ali convergiam alunos de convênio de diversos países da América do Sul, além de extraviados argentinos e uruguaios. Não é demasiado afirmar que em Santa Maria, como em Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre, todas elas sedes de universidades federais, fermentou uma dinâmica integração por sobre as fronteiras nacionais, no Cone Sul, que pôs em circulação gente como Mercedes Sosa e Atahuala Yupanqui” (p.213-214)
Alguém pode argumentar sobre a parcialidade desse minha defesa de Jacaré: como ele, sou cria “cultural” de Santa Maria, embora não nascido na cidade, e também formado no mesmo jornalismo da UFSM. Não nego essa parcialidade: vivo e sou criado no sul que é cenário e utopia do livro. Mas já vivi fora daqui, trabalhei no jornalismo cultural do centro do país, e às vezes me custa compreender como não se comenta mais (muito mais) um livro que começa já com esse arrepiante trecho:
PRIMAVERA
“Gavinhas, trancelins, linho colhido. Vapores da terra perto das casas. Recolhendo ramos enegrecidos, a primavera veio brincar mais uma vez no ombro da aldeia. O dia espreguiçava um pouco mais dentro das barras da aurora alongada, rósea e verde. Para os lados do anoitecer forçava o dia seus calcanhares levando a noite a procurar um novo escuro. Setembro é um mês estético, alerta, delgado, quando a gente passa pelo vão da porta. Tempo de alisar os vincos, desdobrar o coração e ordenar os perfumes no penteador, tudo é vitrina”.
Só para citar um, entre centenas de trechos com a mesma (ou muito mais) força poética.
Numa busca simples no Google, poucas são as resenhas no jornalismo tradicional sobre a obra; no alternativo ou especializado um pouco mais, como esta do Rascunho, o melhor (e único?) jornal de literatura do país. Na universidade há algumas coisas, como esta dissertação de mestrado na UFRGS e esta tese de doutorado da UFSM; na mídia daqui do RS houve algumas notícias quando de seu relançamento (2013; a primeira edição, de 1995, foi da Artes & Ofícios e logo esgotada), e uma matéria completa saiu no SUL 21. Em Santa Maria, que tem a importância já comentada na formação de Jacaré, pouco se falou, e peço desculpas se alguma coisa de mais fôlego saiu e não vi.
São relatos, resenhas e trabalhos que, embora importantes em suas áreas, não atenuam a sensação de que se deveria falar mais (muito mais) de “Assim na Terra”. Mesmo que não seja um livro de fácil leitura, e que críticas possam existir ao seu enredo simples, sem entrelaçamento de histórias e pontos de vista cosmopolitas tão afeito aos lançamentos das grandes editoras brasileiras hoje, estamos diante de um monumento à linguagem como força criadora de mundos. Um atestado da beleza possível da língua portuguesa em suas múltiplas palavras (tente não aprender alguma palavra com o livro; mesmo pra algum professor da língua, não será fácil). E, sobretudo, uma homenagem ao “sul da terra” que nos sedia e nos une enquanto lugar e cultura. Como o jornalista Bernardo Ajzemberg diz na orelha da edição de 2013: “O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty viu certa vez o artista como “aquele que fixa e torna acessível aos mais ‘humanos’ dos homens o espetáculo de que fazem parte sem vê-lo”. Este é, sem dúvida nenhuma, o livro de um grande artista”.
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