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O dia de Leopold Bloom em Santa Maria – por Atílio Alencar

atílioTarde típica do inverno gaúcho em Santa Maria. Frio seco, poucas nuvens no céu, o sol irradiando mais luz do que calor. Na Cooperativa dos Estudantes – a Cesma, para quem aqui vive -, um burburinho raro para o dia da semana. É terça-feira, e o café da cooperativa registra uma movimentação acima do normal.

Como não era normal a paisagem das mesas: sobre a mobília, diversas obras do escritor irlandês James Joyce, em traduções diversas. Edições raras em línguas remotas dividem o espaço com outras mais populares, nacionais – se é que se pode chamar de popular qualquer aspecto da obra de Joyce no Brasil.

O pretexto para a reunião de pessoas, livros e cerveja irlandesa é o Bloomsday – a celebração mundial do 16 de junho em que se passa a trama de Ulisses, a obra-prima entre as obras-primas de James Joyce, espécie de fundação da literatura moderna, senão do próprio século XX. O dia em que Leopold Bloom, o heroi da saga joyciana, vaga por Dublin ao lado de seu amigo Stephan Dedalus, é uma data cultuada em todo mundo.

Na capital irlandesa, os aficionados revisitam o percurso narrado em Ulisses. Em Santa Maria, longe demais dos rastros de Bloom, a homenagem é mais modesta, mas não menos nobre. Há 22 anos, devido ao entusiasmo do professor Aguinaldo Severino, a Boca do Monte integra o mapa mundial da reverência a Joyce.

Num papo rápido, entre goles de Guiness e um pouco de conhaque (a heresia etílica ficou por minha conta), o professor Aguinaldo comentou um pouco da história do Bloomsday santa-mariense: sua vinda de São Paulo ainda nos anos 90, a vontade de fazer aqui um evento até então restrito aos centros cosmopolitas, suas viagens à Irlanda e as coincidências que o conduzem, num magnetismo irresistível e quase místico, ao encontro com outras almas embriagadas da obra de Joyce.

Não só aos vestígios de sua dicção: mas também aos círculos insuspeitos de culto, aos rituais boêmios de leitura e cumplicidade, aos amigáveis desafios de álcool entre gonzos gentis.

Ao final da minha passagem pelo Bloomsday, o professor Aguinaldo,  repetindo um gesto que remete aos vinte e um anos que precederam esse 16 de junho de 2015, ergue o corpo, a voz e o livro, e inicia a leitura em voz alta do episódio Ítaca, em que Dedalus confessa a Bloom sua hidrofobia, o grande motivo que o fazia um abstêmio da água. Da água do banho, mais precisamente.

E o disse com a familiaridade de quem folheia as páginas da saga há incontáveis anos; de quem anda ombreado com Bloom há mais de duas décadas de vida e literatura.

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