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As coisas que os antigos contam – por Atílio Alencar

Coisa que me fascina é o conjunto de sabedorias e crenças populares. Desde o conhecimento sobre ervas curativas até as gambiarras arquitetônicas mais engenhosas, tudo o que é tecnologia do precariado carrega em seu núcleo a originalidade da resistência – seja ela simbólica ou estrutural.

O sincretismo que nos ensinam na escola nada mais é do que a manifestação da inteligência estratégica dos povos explorados. Dos que driblam a perversidade do patronato para estabelecer as narrativas próprias da comunidade em que vivem.

Assim se subvertem as escrituras sagradas em nome da profanação criativa dos excluídos. Assim se dissimulam com máscaras brancas as entidades africanas e indígenas, contra o furor das mitologias colonizadoras, e se evita a extinção de tradições milenares. Para desconcerto das estruturas dominantes, algo respira sob os cascos da cavalaria. E sobrevive, ainda que transformado.

Não há registro, creio eu, de sucesso absoluto na tarefa de eliminar o imaginário de um povo. Porque o pensamento e a sensibilidade cumprem itinerários sinuosos, subterrâneos.

A inspiração para esse preâmbulo vem das conversas com meu velho avô. E também de uma leitura recente, daquelas que realmente instigam o leitor. O livro se chama “Andarilhos do Bem”, do historiador Carlo Ginzburg, e trata-se de um estudo dos ritos propiciatórios realizados entre os séculos XV e XVI na região do Friul, na Itália atual.

Os benandanti eram homens e mulheres comuns que, segundo seus próprios relatos, abandonavam o corpo para deambular pelos campos em certas noites, combatendo feiticeiros devotos do diabo para garantir a abundância das colheitas. Andavam e lutavam em benefício de seu povo, portando ramos de erva-doce, e sofrendo com o açoite dos galhos de sorgo das bruxas.

Os depoimentos registrados pelos sacerdotes do Santo Ofício são incríveis. Trata-se de uma tradição que foi, pouco a pouco, assumindo aspectos da literatura demonológica, através da coação da Igreja Católica – que precisava dar contornos nítidos para os hereges. Era fundamental reduzir todo gesto desviante ao nível do maléfico, nocivo, diabólico. O inimigo precisava ser devidamente catalogado e submetido aos dogmas religiosos.

Ou se estava com Deus, ou se estava contra ele. Para a Igreja era assim, e por conta desta lógica muitos homens e mulheres – principalmente mulheres – arderam nas fogueiras da justiça divina, sob acusação de feitiçaria e de adoração ao demo nas orgias do sabá.

Mas para o povo, esse dualismo sempre foi insuficiente. As crenças pagãs nunca desapareceram de todo; assim, era perfeitamente possível comungar aos domingos e cavalgar sobre gatos e lebres nas noites dos Quatro Tempos, pela sorte das colheitas. Em termos atuais, seria como dizer que “acender uma vela para Deus e outra para o Diabo” é a garantia de se obter atenção de pelo menos uma das entidades para quem se reza.

A investigação é fascinante, porque aborda as múltiplas estratégias de resistência adotadas pelos homens e mulheres assediados pela autoridade religiosa dominante. A narrativa é saborosa, porque confronta o automatismo dos cânones com a dinâmica deslizante das formulações populares –  sempre avessa à ortodoxia, embora evidentemente fragilizada diante da máquina de captura institucional.

E onde caberiam aqui as conversas com meu velho avô? – alguém poderia se perguntar.

Pois bem. Lembro perfeitamente da impressão que o velho pai do meu pai me causava quando desatava a contar causos do campo. Principalmente os causos noturnos e de certa tendência sobrenatural. Recordo com que arrebatamento no olhar o velho Alcides evocava a visita das bruxas ao campo, sempre demarcadas pelos vestígios de flores nas crinas dos cavalos.

Não faço ideia de onde se origina tal ideia; não posso imaginar em que tradição obscura bebe essa visagem camponesa. Mas o parentesco com a mitologia popular, sempre fluída, sempre mutante, que faz de simples camponeses os heroicos defensores da fortuna agrícola, é inegável e aparentemente universal.

Ou melhor dizendo: universal na medida da necessidade. Onde foi preciso combinar e confundir as forças do bem e do mal, a vitalidade do imaginário popular sempre foi extremamente criativa.

Que fique claro que não falamos aqui só de excentricidades campesinas: é de um tipo de ciência que se fala ao investigar as visões de mundo de nosso ancestrais.

Isso, na história, sempre me fascinou: a sabedoria comum de tempos em que se prescindia dos satélites para saber se amanhã chove ou faz sol.

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