As pernas abertas do machismo – por Luiz Alberto Cassol
Um adesivo colado exatamente no receptor de combustível dos carros, com a Presidenta da República de pernas abertas, circulou em cidades brasileiras, principalmente em São Paulo, e foi compartilhado nas redes sociais.
Sim, presidenta! A eleição de Dilma Rousseff também atribuiu acepção de uma letra ao feminino de uma palavra.
Mas, qual o significado desse adesivo montado e de uma atitude assim? Como explicar racionalmente que uma cidadã ou um cidadão fixe isso em seu veículo para rodar por ruas e postos de combustíveis no Brasil?
Tenho convicção de que isso explicita muita coisa. Esse é um dos símbolos da ira que inunda nossos dias.
Alguns dos porquês de como chegamos a esse estado das coisas, com o ódio e a intolerância ultrapassando todos os limites.
Talvez não tenhamos pensado nisso. Mas aqui chegamos. E como chegamos?
Somos o país onde índios foram dizimados com a chegada dos europeus.
Somos o último país da América Latina que aboliu a escravidão dos negros.
Somos o país em que, apenas no século passado, as mulheres passaram a ter alguns direitos pareados com os homens.
Somos o país da América do Sul que, após sua mais recente democratização, não investigava o golpe militar de 1964.
Somos o país presidido por uma mulher altiva, competente, ex-torturada política, que pratica ciclismo ao nascer do dia, seguido da leitura de todos os jornais e sites possíveis, e que encara seus algozes com coragem e determinação únicas.
Revirar esses assuntos e tratar de lhes depurar é dever da nação e de seus cidadãos.
Dilma foi quem criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) para investigar graves violações contra os direitos humanos num território onde não se condenou torturadores na pós ditadura militar, ocorrida entre 1964 e 1985. A famosa foto dela, jovem com olhar sereno sendo interrogada por militares, que escondem o rosto enquanto ela encara de frente sua condição de combatente ao golpe, é emblemática e diz muito do Brasil.
Essa insígnia, e o que ela representa, nunca foi aceita por parcela significativa de velhos militares, saudosistas do regime não democrático, somados a civis, homens e mulheres, de classes sociais média e alta e uma elite retrógrada.
Como assim uma ex-torturada política tornar-se Presidenta da República e ainda criar uma Comissão da Verdade para remexer nos porões da ditadura?
Não apuramos o golpe. Não o trabalhamos com o devido cuidado que merece ter, ou seja, não aceitamos de forma real e contundente, em nossa história, que tivemos um período nefasto, condenando os militares torturadores e mostrando ao mundo que, aqui, isso não é tolerado.
Entendo que é analisando e mexendo com essas situações que podemos avançar enquanto sociedade e aceitarmo-nos mais para progredirmos na qualidade de uma pátria justa e igualitária.
Isso é fundamental. Além do equilíbrio emocional para a nação, traz à tona a razão, a busca pela verdade. A legitimidade. A justiça.
Dentro da própria Comissão da Verdade, profissionais da área da psicanálise trabalharam junto à equipe de entrevista dos torturados, exatamente por ser impossível ocupar-se de tais crueldades sem a devida escuta do que é sentido pelos seres humanos que foram brutalizados.
Não havíamos, ainda, colocado o dedo nessa ferida tão sórdida de nossa memória. Dilma o fez!
Dilma é a chefe da nação brasileira e isso, consciente e inconscientemente, não foi aceito desde sua primeira eleição, por sermos uma sociedade machista e patriarcal que não anseia remexer em suas vísceras. E tenho muitas dúvidas se um dia essa sociedade irá buscar essas entranhas. Machismo, racismo, homofobia e misoginia marcam nossos dias numa herança execrável.
Somado a isso, está o fato de o Partido dos Trabalhadores (PT) ter reparado injustiças históricas criando programas sociais inclusivos e revolucionários, aplaudidos e reconhecidos pelo mundo inteiro. Programas levados a efeito no Brasil por um ex-metalúrgico eleito presidente, Luiz Inácio Lula da Silva e pela primeira mulher eleita presidenta, Dilma Rouseff.
Como ousam mexer com o status quo da casa grande e senzala?
A política de cotas dá a devida atenção a essas graves e históricas discrepâncias sociais. E isso move com uma fatia da sociedade que não pretende aceitar tal condição.
A luta de classes sempre esteve e está por detrás dessa conjuntura. A ruptura das normas em vigor até uma década atrás incomoda os que sempre foram apaniguados com o poder e suas benesses.
Um exemplo aqui no Rio Grande do Sul é o deputado federal, do Partido Progressista (PP) Luis Carlos Heinze, o mais votado pelos gaúchos nas últimas eleições, já em seu quinto mandato. O agropecuarista foi responsável, durante o período eleitoral, por uma das frases mais xenófobas e intoleráveis de nossa História quando se referiu a índios, quilombolas e homossexuais como “tudo que não presta”.
Um país que não respeita que a maior parte de sua população é negra, e rejeita essa condição, tem que se repensar.
Um país que não dignifica os índios por sua representatividade e cultura tem que se repensar.
Um país que não aceita o sentimento afetivo das pessoas e sua sexualidade tem que se repensar.
Um estado, como o Rio Grande do Sul, que tem como mais votado para deputado federal um sujeito que diz tamanha atrocidade tem que se repensar.
Heinze foi um dos artífices do sim pela abertura, no Congresso Nacional, do processo de impeachment da presidenta Dilma.
Grifo a frase seguinte: ele votou sim em um processo que não tem nenhum crime de responsabilidade provado contra ela.
Ou seja, o que foi votado no fatídico domingo, 17 de abril de 2016, não foi a abertura ou não do processo de impedimento do mandato da presidenta Dilma. O que foi votado é a não aceitação de uma mulher como autoridade máxima do Poder Executivo, a rejeição de políticas de inclusão e a perpetuação de arcaicos e reacionários pensamentos no poder.
Um país que não respeita a Democracia que elegeu, legitimamente com 54 milhões de votos, Dilma Rousseff para a presidência, tem que se repensar.
Aliás, foi a primeira vez, por meio de uma transmissão ao vivo por televisão, que a maior parte da população se deparou com seus representantes na Câmara dos Deputados. A decepção com aqueles e aquelas que desconheciam foi transformada em vergonha nos dias que se sucedem.
Agora, muitas das pessoas que saíram às ruas pedindo o fim da corrupção, disfarçadas de preconceito contra Dilma e ódio ao PT, pela primeira vez, puderam ver quem lhes representa, numa demonstração inequívoca, protagonizada por deputadas e deputados, de não argumentos jamais vista até então. Talvez aí o único fator positivo daquele dia. Pessoas podendo conhecer quem lhes representa num espelho que milhares jamais imaginou. Tudo encenado por um deputado, investigado por diversos crimes, Presidente da Câmara, Eduardo Cunha.
As marchas contra a corrupção, embaladas pelos grandes veículos de comunicação somados com a sede reacionária das classes de maior poder aquisitivo, na realidade foram uma evidência inquestionável de um país machista e que não aceita programas de inclusão social.
Essa soma de circunstâncias fez chegarmos aqui e aceitarmos que adesivos com a presidenta de pernas abertas sejam afixados em carros, exatamente para que, na analogia do estupro e da violência da bomba de combustível, tenhamos os objetos e ratos que eram penetrados em mulheres, mesmo grávidas, durante as sessões de tortura na época do regime militar, no período do golpe, trazendo aí uma similitude com o golpe institucional que tentam promover hoje, por meio de uma manobra parlamentar.
Golpe produzido por uma parte de deputados e senadores do Congresso Nacional, o vice-presidente, Michel Temer, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) – derrotado nas eleições – os evidentes representantes das oligarquias brasileiras – que são os grandes veículos de comunicação – e a elite conservadora, que nunca entendeu ou quis compreender o país em que vive, fazendo do preconceito sua marca e provocando ao Brasil, com essa traição histórica, uma reação que vaticinou internacionalmente seu atraso, intolerância e desprezo com o desenvolvimento da nação em todos os sentidos.
O fato cabal é que uma parcela considerável dos cidadãos e cidadãs não aceita uma mulher como sua maior representante e, tampouco, que exista inclusão social das classes menos favorecidas ao longo da nossa história. O pensamento desejoso da casa grande e senzala ladeado com o machismo faz parte de grande quantia de nossa sociedade.
É disso que temos que dar conta e não aceitar. De resto é faz de conta e hipocrisia!
OBSERVAÇÃO DO EDITOR: a imagem que ilustra esta nota é uma reprodução de internet.
Ótimo artigo.