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O ressentido e o revoltado na política brasileira – por Luiz Carlos Nascimento da Rosa e Lucas da Silveira Oliveira

A complexidade da conjuntura política brasileira atual, para o seu entendimento e explicação, exige que a reflexão venha ancorada em uma Teoria Social, rigorosamente crítica, que seja capaz de dar conta das múltiplas determinações que os agentes políticos utilizam para legitimar ou questionar as contradições e conflitos de interesses que circunscrevem uma sociedade mergulhada em relações sociais determinadas pelo capital.

Ao estudar a práxis da sociedade, italiana e mundial, de seu tempo e os possíveis meios de sua transformação, o pensador italiano, Antonio Gramsci, vai afirmar que Ideologia possui duas perspectivas: pode ser apreendida como falsa consciência e como concepção de mundo. A bem da verdade, para nosso autor as duas perspectivas não podem ser compreendidas de forma fragmentária, isto sim, de maneira que se dialetizam no exercício da vida cotidiana. A produção da falsa consciência é gestada pelo silenciamento e o falseamento da realidade social através da retórica dos ideólogos e dos intelectuais que defendem a estratificação entre privilegiados e excluídos das condições culturais, políticas e econômicas.

A concepção de mundo implica uma aderência subjetiva e efetiva a dinâmica do todo social. Na práxis, o ser social explicita sua posição e postura política diante da filosofia que dá conteúdo e forma as mediações que dão vida a sociedade capitalista e sua dinâmica da produção e reprodução da exclusão e discriminação. Na relação entre o Estado e a sociedade civil, os neoliberais defendem o chamado Estado Mínimo, ou seja, o Estado deve interferir e investir o mínimo possível em políticas sociais que beneficie a classe trabalhadora. Na retórica capitalista, o mercado das trocas e seu discurso ideológico, da oferta e da procura, irão regular a relação entre as necessidades de produção da vida e as condições econômicas para sua realização.

Bazófia neoliberal, leitura simplista de mundo e visão mecanicista que não se sustenta em uma investigação histórica do desenvolvimento econômico e social dos seres sociais em seu devir. Esta concepção do mercado como regulador das relações sociais e econômicas é um discurso que oculta que o interesse real do modelo neoliberal pressupõe colocar os recursos e o patrimônio público para o acúmulo cada vez maior de capital. O tripé neoliberal da terceirização, flexibilização e desregulamentação das relações de trabalho surge como uma justificativa para o aumento do número de postos de trabalho, mas, ideologicamente, são formas ideológicas para “desonerar” o Estado quanto ao atendimento das necessidades do trabalhador e do processo de produção de riqueza, o aprimoramento da sociedade do trabalho e o desenvolvimento econômico, político e cultural da classe trabalhadora.

A concepção de mundo da filosofia de vida capitalista, inspirada nesse ideário neoliberal, escamoteia e quer camuflar a exploração da mão visível do capital na vida do trabalhador, na desmaterialização, liquefação e volatilização da concretude dos seres sociais como simples mazelas e inevitáveis processos e condições históricas que estão sujeitos homens e mulheres em condições objetivas de marginalização e exclusão. A incapacidade produtiva e a ineficiência são justificadas pela falta de competitividade e se imputa a sujeitos individualizados e não ao sistema e a opção estrutural da lógica do Mantra capital.

A vida fundada no pragmatismo e funcionalidade, que caracterizam a sociedade da exclusão, é tão potente ideologicamente que faz com que a lógica perversa do capital seja capaz de se entranhar em todas as dimensões da vida humana. A vida fundada nos princípios da perversidade do Capital, nos leva a um caminho inevitável, a falsa sensação de que vivemos em uma sociedade e em um sistema justo que “premia” quem trabalha mais, quem produz mais, através da premissa da meritocracia. Tal premissa é utilizada, coincidentemente, por aqueles que detém os meios de produção, os nascidos em berço esplêndido, detentores do capital, capital este produzido por aqueles que segundo os mesmos, não são “merecedores” de nada além de vender sua força de trabalho durante toda a sua vida.

Na lógica justa do capital, pregada por liberais e neoliberais, só não cresce quem não quer, tudo o que o indivíduo constrói em sua trajetória, é por único e exclusivo merecimento próprio, individual, questões sociais de disparidade e falta de oportunidades, por exemplo, podem ser simplesmente ignoradas desde que o indivíduo se esforce para superar aquilo que se apresenta na sua trajetória e realidade social. A tomada de oportunidades para aqueles que nunca as tiveram, gera revolta, gera ressentimento por parte daqueles que se sentem lesados pela redistribuição daquilo que sempre foi de posse deles, isso mesmo, assusta, é um sentimento de “posse”, empoderamento do que é pautado pela retórica do merecimento.

O mito desta meritocracia é inflado nas sociedades capitalistas, impulsionando um senso comum que cai na vala do desconhecimento e do desinteresse por questões políticas e sociais importantes na formação do indivíduo. Foca-se o mérito ou o demérito apenas no pessoal, sem considerar o contexto de estratificação e origens de classe, processo sofrido por ele (indivíduo) no contexto de sociedade pautada por relações estritamente de quem merece mais e do esforço. A classe média em especial, se apropria desta retórica e reproduz tais determinações das classes dominantes, como se fizesse parte desse nicho, reproduz esse processo como algo natural, algo inerente a todos. Para pensarmos essa questão, tomamos como referência a herança imaterial, uma herança familiar das classes dominantes, aquela que não podemos “ver” mas que é extremamente importante para pensar as desigualdades sociais e a falta de oportunidade para classes baixas, que não contam com esse “capital social”.

Essa herança cultural de classes privilegiadas conta com a transmissão de valores e condutas sociais, que vão de comportamento a acessos a bens imateriais que classes marginalizadas não contam. Acesso a uma rede de ensino privilegiada, espaços culturais de acesso restrito, elitizados pela lógica sórdida da segregação, teatro, cinema, artes de um modo geral. Pensamos então na “reconversão de capitais”, que segundo Pierre Bourdieu, em sua “Dialética da Classificação, Desclassificação e Reclassificação”, discorre sobre o engajamento dos pais na educação de seus filhos. Instrumentos utilizados por famílias de classes altas na França em relação ao ensino público de qualidade superior ao privado e acessado por “classes baixas” francesas, que em grande parte tem um desempenho melhor do que os alunos de classes mais altas e que por essa reconversão de capitais, realocam seus filhos na rede superior privada, essa é a reconversão para espécies mais “rentáveis” no caso da formação destes filhos inseridos em famílias quem detém o capital cultural.

É de grande valia este ensaio para pensarmos questões para além da educação, que é o foco deste ensaio de Bourdieu, sendo importante para desmistificação do mito da meritocracia que assola, não apenas o Brasil, mas as sociedades capitalistas na sua totalidade. Os instrumentos e as oportunidades geradas por famílias de origem com tal capital cultural, são infinitamente maiores do que pessoas pertencentes a origens mais humildes e marginalizadas da sociedade. As classes desprivilegiadas não contam com esse capital e mesmo estando – no caso do ensino superior – em instituições consideradas de melhor qualidade, na lógica fria do mercado saem um passo atrás destes quando se trata de “qualificação”, quem possui o capital cultural vai além do diploma superior, estão inseridos em um contexto onde se colocam à frente com intercâmbios, qualificações no âmbito privado, entre outros instrumentos que os levam sempre à frente mesmo com um conhecimento concreto – por vezes – inferior aos daqueles “não-detentores” deste “capital”.

A sociedade com um todo e principalmente o Estado, podem se eximir de “culpa” por tais desigualdades de oportunidades nesse contexto, quando se pessoaliza o “fracasso” ou o “sucesso”, deixa-se de levar em consideração uma série de motivações para além do esforço pessoal. Se reproduz o velho e arcaico senso comum, é infinitamente mais cômodo julgar o seu fracasso pelo próprio “fracassado” – ora que culpa tem o Estado diante da preguiça, do desinteresse destes reles fracassados – é o êxtase daqueles ressentidos com a redistribuição de oportunidades ocorrida no Brasil nos últimos anos. Argumentam “que estão se apropriando do meu dinheiro suado e batalhado para dar esmola para aqueles que não souberam aproveitar as oportunidades.” Para além do ressentimento, vem a revolta, é então que nos deparamos com comportamentos extremamente animalescos, selvagens de uma revolta que deveríamos esperar daqueles marginalizados pelo sistema e não pelos privilegiados desde sempre.

Na atual conjuntura política nacional, este contexto de desigualdade nos ajuda a elucidar a apropriação do discurso do ódio e da insensibilidade de parte da população, é a ebulição do sentimento de revoltar-se contra o que nem se tem conhecimento ao certo, é a busca de um álibi para a revolta, uma miscelânea de pensamentos vazios, rasos e organizados por uma lógica inflada por uma mídia conivente e uma classe média raivosa no ápice da apropriação do discurso empobrecido do establishment brasileiro, no qual essa classe média ascendente, se considera parte, é uma lógica onde já estamos chafurdados completamente, a lógica da defesa e apropriação das pautas dos opressores e a condenação dos oprimidos.

É um tanto quanto confuso pensar desta forma, onde quem “ousa” lutar por seus direitos, sejam eles de cunho econômico, melhorias nas condições de trabalho, de luta por reconhecimento étnico, racial ou de gênero, é considerado no mínimo “transgressor da ordem pública”, é um sistema pautado em acomodação, aceitação daquilo que nos é imposto e está enraizado no pensamento comum. A grande tarefa pedagógica da política, para a explicação dessa realidade, é explicitar a ideologia que está implícito nesse projeto de sociedade. Os neoliberais e os irracionalistas quando afirmam que em nosso tempo contemporâneo não existe mais ideologia, na verdade, eles estão fazendo a opção pelos privilegiados e reafirmando seu projeto ideológico. Desvelar esse contexto e cenário conjuntural é função de uma militância que se fundamente na Teoria Política, pois essa não admite a neutralidade axiológica na análise do todo social e, muito menos, no exercício teórico e prático da política.

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