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A grande questão da liberdade de expressão – por José Renato Ferraz da Silveira e João Pedro Bandeira Soares

Brasil deu um passo importante, “mas ainda caminha em terreno instável”

O Brasil foi apontado como o país com o maior avanço global em liberdade de expressão em 2024, segundo o relatório anual da organização internacional Artigo 19, com sede em Londres. O levantamento, que monitora o estado do direito à informação e à liberdade de imprensa em mais de 160 países, destacou a mudança de direção registrada após a saída de Jair Bolsonaro (PL) da Presidência da República, no início de 2023.

Segundo a entidade, o ex-presidente protagonizou “um dos mandatos mais hostis à liberdade de expressão desde a redemocratização”, com ataques sistemáticos a jornalistas, tentativas de descredibilizar a imprensa e uso reiterado de sigilos administrativos para bloquear informações de interesse público.

Com a mudança de governo, o relatório registrou uma reversão importante nesse quadro. A abertura de diálogo com jornalistas, a revogação de decretos de sigilo e a retomada de políticas de proteção a comunicadores em risco estão entre os pontos destacados como avanços recentes. Também foram apontados como positivos os esforços por maior transparência de dados e a atuação de instituições como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional no enfrentamento à desinformação.

Por outro lado, o mesmo relatório adverte que o país enfrenta novos desafios que podem comprometer esses avanços, principalmente em relação ao debate sobre a regulação das plataformas digitais e à interpretação do que configura ou não censura. A proposta de regimento sobre redes sociais, que tramita no Congresso e tem sido impulsionada também por decisões judiciais, é vista por parte da sociedade como um risco à livre circulação de ideias, sobretudo quando leva à remoção de perfis com justificativas pouco transparentes ou à suspensão de conteúdos sem o devido processo legal.

Esse contexto tem alimentado uma narrativa reacionária de censura, sobretudo entre aliados do ex-presidente Bolsonaro, que têm usado casos isolados para sustentar a ideia de que haveria um novo cerceamento da liberdade de expressão no país. Os embates em universidades, com paralisação de palestras por grupos de esquerda contrários à presença de certos convidados, também são usados como evidências dessa suposta escalada autoritária.

Nesse ambiente de polarização ideológica, as declarações recentes do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) reforçaram o debate. Durante sessão da Câmara dos Deputados no dia 28 de maio, o parlamentar defendeu a decisão do governo de Donald Trump, nos Estados Unidos, de suspender a concessão de vistos a estudantes estrangeiros cujas postagens em redes sociais sejam consideradas hostis ao país ou ao presidente. “O que estão fazendo é apenas analisar redes sociais. Isso não é censura, é segurança nacional”, afirmou.

O mesmo deputado também anunciou que pretende acionar judicialmente a primeira-dama Rosângela Lula da Silva (Janja), acusando-a de interferir na separação dos Poderes por ter, segundo ele, solicitado ao presidente da China, Xi Jinping, apoio para regular conteúdos de brasileiros no TikTok. A primeira-dama não ocupa cargo público formal e sua atuação tem sido informal e ligada à área social e de comunicação do governo. Ainda assim, o gesto gerou críticas por parte de parlamentares da oposição.

A ironia, segundo analistas, é que os mesmos grupos que acusam o governo de censura no Brasil celebram medidas de restrição tomadas por governos estrangeiros aliados, como é o caso do próprio Trump. A jornalista Angela Pinho escreveu: “agora é o governo Trump, aliado de primeira hora dos Bolsonaros, quem retalia jornalistas que não seguem suas diretrizes e produz imagens de estudantes com opiniões divergentes, ou nem isso, detidos perto de campi universitários. A ver quem na política, se é que alguém, ainda conseguirá se colocar como baluarte da liberdade de expressão”.

A organização Artigo 19, autora do relatório que posicionou o Brasil como destaque positivo, é uma ONG criada em 1987 no Reino Unido e presente no Brasil desde 2007. Seu trabalho combina monitoramento de ameaças à liberdade de expressão, litígios estratégicos e formação de redes de apoio para defensores de direitos humanos, jornalistas e comunicadores populares.

Atualmente, o escritório brasileiro da entidade tem dedicado esforços à regulação democrática da internet, ao combate à desinformação e à proteção de jornalistas ameaçados, sobretudo fora dos grandes centros urbanos. A entidade também está envolvida em inciativas de fortalecimento da Lei de Acesso à Informação (LAI) e da participação cidadã na gestão de políticas públicas.

No entanto, o avanço da liberdade de expressão no Brasil ainda é frágil. O país continua entre os mais perigosos do mundo para o exercício do jornalismo, segundo rankings da Repórteres sem Fronteiras, e registra altos índices de processos judiciais contra comunicadores, assédio judicial e tentativas de silenciamento através de mecanismos legais. O desafio, segundo a Artigo 19, é consolidar os avanços institucionais sem que isso implique retrocessos na pluralidade e no debate de ideias.

Ao mesmo tempo, o Brasil observa uma nova configuração de tensões informacionais, com o crescimento de influenciadores digitais e comunicadores de extrema direita que fazem uso político da liberdade de expressão para disseminar discursos de ódio, desinformação e ataques pessoais. Isso impõe a necessidade de um debate mais maduro sobre os limites da liberdade, os mecanismos de responsabilização e a construção de um ecossistema de comunicação mais saudável.

Em resumo, o Brasil deu um passo importante na recuperação da liberdade de expressão, mas ainda caminha em terreno instável. Os próximos anos serão decisivos para definir se o país consolidará um ambiente de informação plural, seguro e livre, ou se continuará vulnerável a retrocessos institucionais travestidos de defesa da democracia.

(*) José Renato Ferraz da Silveira, que escreve às terças-feiras no site, é professor Associado IV da Universidade Federal de Santa Maria, lotado no Departamento de Economia e Relações Internacionais. É Graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP e em História pela Ulbra. Mestre e Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP. Colunista do Diário de Santa Maria. Participou por cinco anos do Programa Sala de Debate, da rádio CDN, do Diário de Santa Maria. Contribuições ao jornal O Globo, Sputnik Brasil, Rádio Aparecida, Jornal da Cidade, RTP Portugal. Editor chefe da Revista InterAção – Revista de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) (ISSN 2357- 7975) Qualis A-2. Editor Associado da Scientific Journal Index. Também é líder do Grupo de Teoria, Arte e Política (GTAP).

João Pedro Bandeira Soares é graduando em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Membro do Grupo de Teoria, Arte e Política (GTAP).

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