Astolfo não mora mais aqui – por Bianca Zasso
E mais uma perda. Esta coluna está cansando que falar delas, mas uma das marcas da vida adulta é que precisamos lidar com a falta. Como já não somos mais crianças no reino da fantasia, onde um boneco morre na brincadeira de Forte Apache para no minuto seguinte ressuscitar em outro universo, lá vamos nós encarar de frente a passagem de Rogéria.
A “travesti da família brasileira”, como ela mesma gostava de se intitular, faleceu na última segunda-feira, aos 74 anos. Ela, que foi batizada como Astolfo Barroso Pinto mas conquistou o mundo com o nome que ganhou de um colega maquiador, não era apenas atriz. Os amantes da TV se acostumaram a vê-la como jurada no programa do Chacrinha e participando de novelas em personagens que iam além da simples interpretação. Rogéria levava suas causas para as telas e os palcos sem medo.
Trabalhou com cineastas como Júlio Bressane e Carla Camurati, mas foi pelas mãos da jovem atriz e diretora Leandra Leal que aconteceu sua despedida. Nada programada, mas intensa e verdadeira, como só Rogéria poderia ser.
No documentário Divinas Divas, que por si só é uma grande lembrança com toques de poesia da infância de Leandra, vivida na coxia do teatro Rival, que pertence a sua família, tem como pano de fundo um novo espetáculo com importantes travestis brasileiras que lotavam casas noturnas nos anos 70, como Jane Di Castro, Marquesa, Brigitte Búzios, Fujica de Holliday, Eloína e Divina Valéria.
Rogéria é, sem dúvida, a mais conhecida de todas e se desnuda diante da câmera de uma forma única. Mantêm a elegância inabalada seja no ensaio das coreografias ou comendo um pão com manteiga relembrando o passado na padaria. Tinha uma coragem admirável, daquelas que faltam em muitos que gostam de julgar os desejos e vivências do outro sempre como errados. Assumam que o problema são vocês e não quem está na sua frente.
Apesar de sempre fazer questão de lembrar seu nome de batismo com até alguma ironia, Rogéria vai ser sempre Rogéria, independente se um pedaço de papel afirmar o contrário. Astolfo é um substantivo próprio e nada mais. Rogéria é um substantivo feminino, que foi dona de si e mais macho que muito João e José por aí.
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