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Educação especial e critérios da normalidade e deficiência – por Demetrio Cherobini

Os critérios atuais para definir normalidade e deficiência mental são precários e obscurecem a compreensão da aprendizagem e do desenvolvimento humanos. O critério hoje dominante é relativo ao tipo histórico de sociedade na qual vivemos, com suas especificidades materiais e simbólicas. Sendo contraditória e transitória essa sociedade, contraditórios e transitórios serão os princípios teóricos utilizados na avaliação das condições de existência dos indivíduos particulares.

As contradições nascem no plano da prática social. Mediante variadas instituições, são transpostas ao âmbito da cultura, onde se formam as teorias e os critérios usados na determinação da “normalidade” ou “deficiência” dos sujeitos. Uma vez aí formados, os constructos culturais passam a retroagir sobre as práticas sociais, mantendo com elas uma relação de permanente reciprocidade dialética (*).

Em nosso contexto, a fonte dos critérios reside na economia política capitalista. Mais precisamente, na lógica material desse sistema, que exige o controle do tempo de trabalho durante a exploração da mais-valia no processo de produção das mercadorias. Nesse movimento, o capital impõe aos trabalhadores, entre outras coisas, a necessidade inexorável do aumento da produtividade – isto é, produzir mais em menos tempo (**).

Eis aí a matriz de conceitos suspeitos e tremendamente problemáticos: grosso modo, da perspectiva do capital, normal é quem se submete livremente à exploração, trabalha segundo suas regras ou virtualmente tem a possibilidade de fazê-lo, se estiver sem emprego (***).

Ora, a normalização – como adequação padronizada ao capital – tem um momento decisivo na escola. É onde os sujeitos disciplinam o corpo e a mente para competir e ser produtivos, o que equivale a dar as respostas intelectuais e práticas, requeridas por um superior hierárquico, num prazo arbitrariamente fixado – e, ao final, receber uma nota como espécie simbólica de “pagamento” pelo desempenho.

Assim, no mundo do trabalho, normal é o indivíduo que se adapta, obedece e produz para o lucro de outrem. Tende-se a considerar deficiente quem precisa de tempo e gastos desmedidamente maiores – em relação à média – para aprender a realizar tais obrigações.

Conclui-se, desse modo, que a escola, por sua própria dinâmica interna, participa dos processos de normalização e patologização. Desempenha atividades que engendram o normal e o deficiente, tendo como critério não refletido a preparação do sujeito para o mercado de trabalho (****).

(*) Conforme Marx e Engels, A ideologia alemã (São Paulo: Boitempo, 2007).

(**) Sobre essa teoria, ver Marx, O Capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

(***) Numa sociedade onde os tempos humanos não fossem homogeneizados e submetidos às exigências da exploração, os critérios seriam diferentes. Para dois interessantes comentários da explicação de Marx a respeito de como o capital subordina e controla o tempo de trabalho dos indivíduos, ver: Daniel Bensaïd, Marx, o intempestivo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999) e István Mészáros, O desafio e o fardo do tempo histórico (São Paulo: Boitempo, 2008).

(****) Não se quer dizer com isso que não se deva participar da escola no capitalismo. Trata-se apenas de não mistificá-la como espaço ou meio de emancipação social. As escolas são o Leito de Procusto dos que vão trabalhar para o capital.

(*****) Demetrio Cherobini, professor da rede municipal de Santa Maria, é licenciado em Educação Especial e bacharel e Ciências Sociais pela UFSM, mestre e doutor em Educação pela UFSM e pós-doutor em Sociologia pela Unicamp.

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2 Comentários

  1. A ideologia burguesa pega todos os tipos de sociedades existentes anteriores e à parte em relação capitalismo, com todas as suas imensas diferenças, e as enfia na mesma categoria: “sociedades primitivas”. Da mesma forma como pega todos os indivíduos singulares, com todas as suas imensas diferenças, e os enfia em duas categorias: “normais” e “deficientes”. O burguês mediano, assim como o pequeno-burguês mediano, via de regra, gosta de proceder dessa forma simplista: pegar toda a diversidade existente e reduzi-la a uma ou duas categorias de análise que o próprio capitalismo cria ou criou em determinado contexto histórico.

    Mas não há “sociedades primitivas” (Primitivas em que termos? E em relação a que ou quem?). Há inúmeras formas de organização social, com grandes diferenças entre si e alguns traços semelhantes em termos de práticas materiais e referenciais simbólicos. É uma tremenda burrice acreditar que isso que você chama de “sociedade primitiva” pensaria em termos de “normalidade e deficiência” tal como um burguês do século XIX (tal como você o faz, provavelmente sem o saber – é porque a sua doutrinação capitalista está tão entranhada em sua mente que você sequer tem capacidade de abstração para refletir sobre ela).

    Os referenciais matérias e simbólicos de alguma dessas sociedades que você chama de “primitiva” são diferentes dos nossos. Seria necessário investigar concretamente por que algumas dessas sociedades “abandonam para morrer” alguns de seus membros e quais os referenciais usados para justificar essa ação. Mas com certeza não são os critérios do positivismo filosófico ou do liberalismo econômico e político.

    Não há critérios universais e absolutos para a “normalidade” e a “deficiência”.

  2. Centro de Educação da UFSM e sociologia na Unicamp. Depois não tem doutrinação nas universidades.KKKKKKKKK!
    Nas sociedades primitivas os ‘deficientes’ eram abandonados para morrer ou mortos logo de cara. ‘Eram’ força de expressão. Ainda são. Nada a ver com o capitalismo. Noticia boa: tentar explicar o século XXI com ‘filosofias’ do século XIX.

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