PERSONAGEM. Como Mourão largou o linguajar e os modos da caserna para virar o ‘Mozão’ dos jornalistas
Por VASCONCELO QUADROS (com foto de Wilson Dias/ABr), da PÚBLICA, Agência de Jornalismo Investigativo
Ao chegar eufórico ao gabinete de seu superior para revelar uma ideia que repentinamente lhe viera à cabeça, o tenente-coronel Alexandre Lara de Oliveira foi recebido com uma ducha de água fria. “Para que sua ideia serve?”, perguntou o superior, que, não vendo nada de útil para solução de problemas da caserna no brilhante lampejo, emendou: “Se sua ideia não serve para nada, então abandone”.
Oliveira aprendeu a lição. Nos últimos 12 anos, depois de ter deixado São Luiz Gonzaga, na fronteira com a Argentina, com a patente de capitão de cavalaria do Exército, o atual secretário de Imprensa do presidente Jair Bolsonaro mergulhou nos estudos para agregar à experiência militar graduações em jornalismo, publicidade, propaganda e marketing, com pós em gestão de crise. Como se vê, ferramentas imprescindíveis num governo que mal começou e já sofre baixas com potencial de estrago.
“Todo governo passa ou passará por crises”, diz ele, com a tranquilidade de quem, antes de aceitar o convite do general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) para assumir a Secretaria de Comunicação do Palácio do Planalto, foi um dos responsáveis pela mudança de imagem, postura e de conteúdo do surpreendente general Antônio Hamilton Mourão que emergiu em 2019.
Mourão em nada lembra o general afastado do Comando Militar do Sul em 2015 por incitar a tropa para um “despertar patriótico” contra o governo e por defender o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff como alternativa de “descarte da incompetência, da má gestão e da corrupção”. Nem o general que, transferido à mesma época para uma função burocrática na Secretaria de Finanças do Exército, pregou um novo golpe militar para derrubar Michel Temer e acabou sendo obrigado, como punição derradeira na ativa, a vestir o pijama.
Pouca gente percebeu, mas nas últimas três semanas de 2018 um transformado Mourão frequentou discretamente o serviço de comunicação do Exército. Ao alvorecer e ao pôr do sol, Alexandre Lara de Oliveira, misto de jornalista, marqueteiro e militar, comandou sessões de media training com duração de 30 minutos, nas quais o general foi submetido a rigorosas sabatinas, nas quais nenhum tema era tabu.
Das questões administrativas dos negócios de governo à política, o general foi provocado sobre tudo: Lula, PT, aborto, evangélicos, direita, esquerda, corrupção no governo, crises e, enfim, o que se tornará pauta jornalística obrigatória nos próximos quatro anos.
O general se deixou levar e não resmungou nem diante de temas e perguntas picantes, aquelas em que o assessor faz as vezes de advogado do diabo, colocando o assessorado contra a parede. “Fomos até o limite da autoridade”, conta Oliveira.
O treinamento aplicado a Mourão é baseado no entendimento de que, independentemente de ideologia, política e imprensa andam na mesma trilha. O político, segundo essa compreensão, precisa focar nas questões de Estado, entender a lógica da notícia, falar ou responder sempre com o que é mais importante, ou, no jargão profissional, o que dará um bom lide.
“O general Mourão é um homem preparado. Absorveu rapidamente o que interessava e passou a se expressar de forma mais produtiva no contato com a imprensa”, elogia Oliveira.
Disciplinado e aplicado, o general seguiu à risca um programa de treinamento em que a análise de temas e de cenários era baseada em três fases simples: introdução, desenvolvimento e conclusão, aplicáveis tanto em entrevistas quanto em palestras. “Ele aprendeu a entender o que os jornalistas buscam, que é o lide”, afirma Oliveira.
Professor de comunicação institucional em entidades estatais como o Ministério Público e Academia Nacional da Polícia Federal, sem se descuidar, naturalmente, do aperfeiçoamento nas artes militares, o tenente-coronel diz que Mourão absorveu com facilidade os objetivos do media training.
Uma dose de paciência aqui, outra ali, e logo nos primeiros dias de governo, no comando interino, Mourão se sentiu à vontade para falar com jornalistas, sem repetir tiradas como o conselho sobre as regras básicas que um homem deve seguir depois dos 60 anos: “Jamais despreze o banheiro; nunca desperdice uma ereção; em hipótese alguma confie num peido”, disse, numa conversa informal, em tom de brincadeira, mas devidamente registrada pelo repórter que traçou seu perfil na revista Piauí de dezembro do ano passado.
O Mourão de 2019 já dispensa o vocabulário golpista, o linguajar chulo e não envereda mais por declarações ofensivas, como quando afirmou num evento que “o brasileiro herdou a cultura de privilégio dos ibéricos, a indolência dos indígenas e a malandragem dos africanos”.
O general adaptou-se com incrível rapidez às orientações dos marqueteiros verde-oliva. Os políticos em geral se surpreenderam com a metamorfose. Em vez do brucutu autoritário, o Mourão desse início de governo tem se revelado um democrata versátil, um político atencioso até com antigos adversários, ao ponto de parecer próximo às correntes progressistas achincalhadas sem trégua pelos seguidores do capitão.
Ao contrário do que disseram os integrantes do clã Bolsonaro, por exemplo, Mourão disse considerar graves as ameaças contra o ex-deputado Jean Wyllys, afirmou que é a mulher que deve tomar a decisão em caso de aborto, defendeu investigação sobre as suspeitas que pairam sobe o senador Flávio Bolsonaro e – “traição” suprema a quem costurava acordos com Israel e Estados Unidos – recebeu uma delegação palestina e se opôs ao alinhamento automático com qualquer país.
Fogo amigo
O “fogo amigo” não demorou e partiu de todos os lados: dos evangélicos, dos filhos do presidente e dos principais pensadores de direita que fazem a cabeça dos Bolsonaro. A artilharia mais pesada partiu do guru do presidente, o filósofo Olavo de Carvalho. “Mourão, você não tem vergonha de puxar o saco desse Jean Wyllys e nada fazer em minha defesa?”, afirmou o filósofo num dos vídeos que costuma divulgar pela internet.
Carvalho disse ainda que, enquanto os israelenses socorriam vítimas da tragédia de Brumadinho, “o Mourão estava trocando beijinhos com a delegação palestina” e prometendo que a embaixada brasileira não será transferida para Jerusalém, como prometera Bolsonaro.
O general deu de ombros e, com desdém que está se tornando comum no novo layout, perguntou aos jornalistas que o abordaram quem se importava com as opiniões de Olavo de Carvalho, lembrando que o guru não poupara nem o general Augusto Heleno.
Indagado como o general reage nos bastidores às críticas de Carvalho, o conselheiro informal tão empoderado que indicou dois ministros, o da Educação e de Relações Exteriores, o tenente-coronel Oliveira foi buscar uma expressão na terra natal.
“Não se gasta pólvora com chimango”, disse, apressando-se a explicar que a frase era dele, e não do general. É um jeito de dizer que o adversário não vale uma briga. Na história dos conflitos rio-grandenses entres os velhos caudilhos, os chimangos sempre estiveram ao lado das forças militares governistas contra os maragatos, que eram oposição. Em vez de tiro de espingarda ou garrucha contra inimigos, que exigia pólvora, os maragatos usavam a arma branca, com frequência também na degola de adversários aprisionados.
O general Mourão tem sido uma espécie de maragato. Fruto de sua personalidade, e também do marketing verde-oliva, assumiu um papel de contraponto ao governo. Ainda no primeiro semestre deste ano, em data ainda não definida, visitará China, onde participará da reunião de cúpula dos países do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Maior parceiro comercial, a China ainda não esqueceu as ofensas de Bolsonaro, que mesmo depois de eleito tratou o gigante asiático como um predador que, em vez de comprar no Brasil, “quer comprar o Brasil”. A maior tarefa de Mourão no encontro será apaziguar as relações com a China.
De Etchegoyen a Mourão
Oliveira vem debelando crises desde o governo Michel Temer, onde trabalhou como assessor do general Sérgio Etchegoyen no GSI. Encerrada a eleição, passou a assessorar diretamente o general Mourão, até ser chamado para a Secom em meados de janeiro, onde faz a interface entre o gabinete presidencial e jornalistas.
Sua tarefa agora é, entre outras demandas do dia a dia, ajudar o governo a aprovar a DRU (Desvinculação das Receitas da União), cujo engessamento restringe os investimentos a 6% do orçamento, as reformas da Previdência e tributária, e tentar mostrar à sociedade que o estamento militar que chegou ao poder com Bolsonaro, em analogia à metamorfose de Mourão, desvencilhou-se dos vínculos que marcaram as gerações ligadas à ditadura.
O coronel diz que os segmentos civis que ainda enxergam os militares com um pé nos anos de chumbo raciocinam “pelo retrovisor” e estão “45 anos atrasados no tempo”. Os que, às vésperas das eleições, pediam soluções radicais, como intervenção militar, segundo ele, fazem parte das mentes colonizadas, gente desencantada com a democracia e em busca de soluções radicais que não encontram mais espaço num mundo civilizado…”
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Classificação militar de algumas das últimas declarações do B17 é ‘falou m.’. Só que se criarem um escândalo toda vez (vamos combinar que os jornalistas votaram em massa no Andrade) não se faz outra coisa, ou seja, perde-se tempo.