ARTIGO. Ricardo Ritzel e um pouco de três lendas do Rio Grande: os generais Gumersindo, Flores e Honório
De que é feito um general gaúcho…
Por RICARDO RITZEL (*)
A lenda do general de cavalaria gaúcho nasceu nas guerrilhas charruas e guaranis do século XVII e XVII e cresceu na disputa palmo a palmo da fronteira na América Meridional entre os reinos de Portugal e Espanha.
Ficou conhecida por versos e trovas em todo mundo através de relatos da Revolução Farroupilha, como as “Memórias de Giuseppe Garibaldi”, de Alexandre Dumas.
Se consagrou na Guerra do Paraguai no comando de eficientes e arriscadas operações militares, com nomes como de Osório, Netto, Andrade e Neves e, por que não, do lendário coronel Niederauer.
Porém, nunca antes este mito foi colocado tão à prova quanto no período revolucionário rio-grandense, que vai de 1890 até 1930, com o surgimento no campo de batalha de tropas com fuzil Mauser e canhão Krupp, coordenadas por telégrafos e transportadas por ferrovias.
Nessas condições tão desiguais, o entrevero, luta de lâminas até então usada com excelência pelos gaúchos desde o século XVII, se tornou ineficiente, fazendo com que a gloriosa cavalaria gaúcha se contentasse com uma eterna fuga das forças legalistas pelas extensas coxilhas do Pampa.
No máximo, os líderes rebeldes deste período conseguiram tomar algumas cidades por alguns dias, embora tenham mantido o inimigo sempre em um eterno alerta (e medo) por suas impressionantes táticas de guerrilha.
Na verdade, as forças revolucionárias deste período nunca conseguiram trazer o governo para as negociações políticas, o verdadeiro e principal objetivo das revoluções de 1893 e 1923, pois não tinham nenhuma ilusão de derrubar as tiranias de Castilhos e Borges de Medeiros somente com adagas, lanças e patas de cavalo.
Mas é exatamente neste período que, como o canto do cisne, generais nascidos no Estado mais ao sul do Brasil fascinaram historiadores pelos seus atos e feitos militares, assim como atraíram a idolatria de várias gerações de rio-grandenses pelas suas maneiras de ver e viver a vida, terminando de construir um tecido sociocultural que hoje chamamos de tradição gaúcha.
Esses generais não foram somente “bárbaros caudilhos” defendendo um capital e comandando hordas de gaúchos fazendo quarteladas e revoluções. Eles tinham o fascínio de seus comandados por serem grandes guerreiros que iam à frente de sua tropa demonstrando como ganhar (ou perder) uma batalha.
E também tinham a idolatria do povo simples desta terra por suas personalidades evocarem, por conduta e tipo de vida, a alma de uma cultura, o espírito nativista do Pampa, de uma tradição que chamamos de gaúcha, ou gaucha.
E assim são reverenciados até hoje, tanto deste lado da fronteira como do outro.
Mas não se iludam, não eram e nem foram rebeldes românticos. Foram sim homens duros, líderes militares frios e guerreiros implacáveis.
Surpreendendo o artilheiro legalista
E o primeiro deste tipo de líder militar é, sem dúvidas, o general Gumersindo Saraiva, também chamado de “Napoleão dos Pampas”. Ele foi um brilhante estrategista e exímio tático, tanto que até hoje suas técnicas de combate são estudadas em academias militares do mundo inteiro.
Mas Saraiva também soube ser magnânimo com o inimigo derrotado e também bastante humano com prisioneiros e feridos em um tempo de revoluções sanguinárias. Um diferencial entre a maioria. Mesmo com a propaganda castilhista o retratando como um bandido cruel e mesquinho.
Um exemplo de como Gumersindo se tornou lenda até mesmo para seus inimigos aconteceu em Tijucas, Paraná, quando as forças federalistas comandadas pelo general gaúcho sofreram uma grande derrota devido a uma valente e certeira ação da artilharia legalista comandada pelo então tenente José Cândido da Silva Muricy.
Dias depois, com a chegada de reforços revolucionários, Tijuca se rende e o tenente da artilharia é feito prisioneiro pelo Exército Revolucionário. Um dia após, sua esposa dá luz a uma criança e é acometida de violenta infecção puerperal, necessitando de urgente cirurgia realizada somente em Curitiba.
O pedido de atendimento médico para a companheira do prisioneiro chegou ao general rebelde que, de imediato, recordou da valente atuação do tenente na derrota que sofrera há poucos dias e ainda de uma promessa quebrada por Muricy em Desterro (hoje Florianópolis), quando, logo após um combate, foi feito prisioneiro e, depois, liberto pelo general com a promessa de não voltar a luta.
“Ele tinha tudo para me passar nas armas, mas não o fez pelo profundo respeito que tinha ao ser humano, mesmo sendo adversário que o tinha imposto pesadas perdas dias antes”, recordou.
Uma hora depois, uma locomotiva estacionou na Gare de Tijucas e um vagão foi colocado à disposição da esposa do oficial artilheiro. Dentro dele, dois médicos da coluna revolucionária. Entre eles, o médico pessoal do caudilho gaúcho, Ângelo Dourado. A jovem esposa de Muricy chegou com vida na capital paranaense, onde foi operada e recuperou sua saúde.
Estas são as exatas palavras do general Muricy em seu livro de memórias: “como era reconfortante assistir, por iniciativa de inimigos de ontem, a prática de atos assim, de tanto humanitarismo. (…) Era a herança de seus antepassados, nascidos e criados no bem e na nobreza de caráter que orientava os atos de Gumersindo”. (A Revolução de 93 nos Estados de Santa Catarina e Paraná – General José Candido da Silva Muricy, pag 304).
A admiração do arquinimigo
Outros deste tipo de caudilho que fascinam historiadores e multidões são os generais José Antonio Flores da Cunha e Honório Lemes. Eles lutaram, literalmente, corpo a corpo em bandeiras opostas nas revoluções de 1923, 25 e 26.
Cada um com suas peculiaridades e diferentes em quase tudo.
Flores da Cunha vinha de um berço de ouro, tinha uma educação refinada, falava quatro idiomas e era advogado. Honório vinha de uma família muito pobre, era tropeiro e quase analfabeto. “Mal escrevia o português. Tinha uma letra de garranchos infantis”, lembrou uma vez Flores da Cunha sobre o inimigo maragato.
Porém os dois eram justos e generosos com prisioneiros e inimigos feridos em batalha, assim como duros com seus próprios soldados quando promoviam saques, violações ou degolas, chegando ao ponto de entregá-los à Justiça para serem julgados.
Flores da Cunha tinha um retrospecto de combate com mais vitórias sobre as tropas de Honório, porém o general maragato conquistou uma fama de inalcançável, principalmente quando se refugiava na Serra do Caverá, lugar que conhecia como a palma da mão desde criança, deixando seus perseguidores “mais perdidos que cusco em tiroteio” entre seus vales, matos e reentrâncias.
Até que, em outubro de 1926, Honório Lemes retorna do exílio uruguaio liderando um forte contingente rebelde e tenta se unir com forças revolucionárias que estavam em São Gabriel. Fazia um extremo calor fora de época e uma chuva constante havia caído por todo o Estado por vários dias.
Foi quando o general Flores da Cunha, aproveitando da situação de cheias nos rios da região e em um brilhante golpe tático, cercou o seu arquinimigo entre os intransponíveis Rio Ibicuí da Conceição e o Banhado das Marrecas. Tinham chegado ao fim as lendárias fugas do general Honório Lemes.
Uma bandeira branca foi erguida na posição maragata e, logo depois, surgia saindo do mato a figura de Honório com uma tranquilidade ímpar, mesmo com o semblante amargo da derrota estampado no rosto. E assim, sozinho, se dirigiu a Flores da Cunha e pergunta:
-“General, finalmente a vitória é sua. Como quer que eu o trate, de doutor ou general?
– “Me chame apenas de doutor, já que sou formado em Ciências Jurídicas”, respondeu Flores.
– “Melhor assim, porque nestes tempos qualquer índio rude como eu pode ser general”, retrucou Lemes, já retirando seu revólver do coldre e o entregando a Flores.
O general legalista, no ato, se afasta um passo do seu inimigo vencido e o contesta com educação e, mais ainda, admiração. “Não quero suas armas, general Lemes. Não se tira as armas de um general gaúcho”.
Neste instante, Osvaldo Aranha, que tudo assistia ao lado de Flores, atira o chapéu para cima gritando: “Viva o Rio Grande do Sul…Viva a toda a nossa gente”. A saudação foi replicada por toda tropa legalista e maragata. Logo após, os rebeldes começaram a sair de suas posições para entregar suas armas aos vitoriosos.
Naquele mesmo dia, Flores ainda salvou a vida de Honório Lemes quando, já no trem que os levava para Porto Alegre, se colocou entre o líder maragato e um grupo de oficiais chimangos que queriam a degola pura e simples do lendário general.
Conta a lenda que Honório cumpriu 20 meses de prisão ainda com sua adaga de prata e um revólver calibre 44 municiado no 3º Batalhão da Brigada Militar, em Porto Alegre, até ser libertado por um Habeas Corpus.
Homens que se tornaram lendas gaúchas. Lendas deste espaço mágico que chamamos de Pampa. Histórias do Rio Grande do Sul.
(*) RICARDO RITZEL é jornalista e cineasta. Apaixonado pela história gaúcha é roteirista e diretor do curta-metragem “Gumersindo Saraiva – A última Batalha”. Também é diretor de duas outras obras audiovisuais históricas: “5665 –Destino Phillipson”, e “Bozzano – Tempos de Guerrra”. Ricardo Ritzel escreve neste site aos sábados.
Créditos das fotos: Gumercindo Saraira (Arquivo Museu da Lapa – SC); Flores da Cunha e Honório Lemes (Arquivo do Museu Júlio de Castilhos, de Porto Alegre).
Bibliografia utilizada pelo autor: “Gumersindo Saraiva – O guerrilheiro pampeano” (Sejanes Dornelles – EDUCS/1988); “Fronteira Rebelde” (John Chasteen – Editora Movimento/2003); “Flores, de corpo inteiro, da Cunha” (Lauro Schirmer – RBS Publicações/2007)
Flores da Cunha, avo de Flavio Flores da Cunha Bierrenbach, ex-ministro do STM. Tanto ele quanto Osvaldo Aranha não foram presidentes, não só mas também, por causa de Getúlio Vargas.
Cabe notar que naquela época já chamavam advogado de doutor. Diferença porém é enorme. Maioria dominava mais de um idioma. Hoje mal falam português.
Coluna muito boa como de costume.