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CRÔNICA. Orlando Fonseca e os vícios de linguagem. O do momento, a partir de Jair Bolsonaro, é “questão”

Questão da questão

Por ORLANDO FONSECA (*)

Não recomendo a ninguém ficar prestando atenção à trôpega arenga do atual Presidente desta nossa também trôpega República. De resto sempre haverá os que correm a dizer que os antecessores também escorregavam no vernáculo: um exagerava nas metáforas e termos anacrônicos, a outra tropeçava na sintaxe e o último era até correto – apenas na gramática, como se sabe – mas um inveterado amante do pronome enclítico. Digo isso me referindo a um vício de linguagem em voga que o Primeiro Mandatário da Nação elevou à décima potência: o uso da palavra “questão” como uma bengala linguística.

O dicionário é muito claro ao definir os limites semânticos da palavra: questão é um substantivo que significa pergunta ou interrogação. Por extensão, pode significar algo que suscita debate ou discussão; pode ainda definir algo que precisa ser resolvido, problema.

Desse modo, quando não se está referindo especificamente a itens de um questionário, prova ou pesquisa, a palavra questão indica o que a economia linguística aponta como uso extensivo de tema polêmico ou algo que carece de resolução. Por exemplo: “A questão do uso de embriões para criar células tronco foi discutida no STF”; ou “Gostaria de visitá-los, a questão é que estou em isolamento social.”

A partir daí é que o termo passa a ter funções diversas para definir muita coisa, como item, tópico, ponto, sem haver, na verdade um debate ou problema a ser resolvido. Por isso identifiquei antes como termo coringa. Por exemplo: “Vamos tratar da questão dos nossos ancestrais” – qual o problema (?), o que há de polêmico com nossos avós (?), quando na verdade só queremos falar sobre nossos ascendentes, até com orgulho.

De tempos em tempos, tais termos aparecem como pragas, e se proliferam em terrenos férteis para esse tipo de discurso, como determinados grupos sociais ou mídias. Por exemplo, na década de 70, do século passado, os radialistas tornaram epidêmico o uso da expressão “a nível de”, para enunciar coisas que não dependiam de gradação alguma. Se queriam dizer que o prefeito tratou de algum tema de mobilidade urbana, lascavam ao microfone: “A nível de transporte público a administração municipal…”

Já nos anos 90, motivados por um certo desenho animado, cuja fala coloquial das personagens adolescentes traduzida trazia “tipo assim” a cada trecho entre sujeito e verbo, verbo e complementos, tornou-se um vício difícil de fugir. A galera enfiava, tipo assim, trocentos “tipo assim”, antes de, tipo assim, informar algo, tipo assim, novo.

Tem também o gerundismo. Com a proliferação do telemarketing, a linguagem dos Call-Centers também se espalhou feito coronavírus, no início deste século. Importando o modelo do mercado americano, até mesmo a linguagem se tornou um arremedo do que se fazia nos States. Por essas é que o uso indiscriminado do gerúndio se criou no papo da patuleia: “Vou estar transferindo o senhor para o setor responsável”.

Essa tendência a se apoiar em bengalas é, em verdade, um sintoma da dificuldade de articulação de um texto, oral ou escrito. E isso tem muito a ver com a falta de hábitos de leitura extensiva, e a adoção de cultura do padrão fast food. Discursos vazios de argumentação, falta de operadores entre segmentos da informação, dificuldade em estruturar uma progressão na exposição de ideias. Já seria suficiente que as criaturas tivessem consciência de que um texto, como de resto a vida, tem início – meio – fim, nessa ordem.

E agora a questão da questão, que o Bolsonaro ainda customizou, pronunciando o vocábulo como se tivesse o trema, aquele sinalzinho que a Reforma Ortográfica pôs por terra: qüestão. Os admiradores do mito, para fazerem isso daí como o próprio, estão inclusive adotando esta idiossincrasia – para não chamar de outra coisa.

Nos anos 70, dir-se-ia (a la Temer) para estar inserido no contexto, como popularizou o Simonal em uma canção. Isso é o que acontece quando o senso comum assume o posto de substrato para o sem-noção.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Observação do editor: A imagem é uma reprodução de internet, sem autoria definida. Foi extraída do portal Obvious (AQUI).

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2 Comentários

  1. Esquerda academica e seus vicios/preconceitos burgueses. Quando o Lula assassinava a lingua portuguesa nao reclamavam uma virgula.

  2. Faltou o ‘com certeza’. Questão toda é que não tem a menor importância. Não é só no Brasil, em boa parte do planeta a população está cansada da forma em detrimento do conteúdo e da imagem em detrimento da propaganda. Próximo primeiro mandatário tem domínio do vernáculo. Até um principio de calvície foi ‘ajeitado’. Para alguns é o que importa. Engomadinho levou boa parte do gabinete Temer para São Paulo. Kassab era chefe da Casa Civil, enrolado no judiciário teve que se ‘licenciar’, nada que um laranja não resolva. Para alguns isto não importa. Melhor a roubalheira com imagem de normalidade do que o populismo com português estropiado. Que ninguém se engane, com a pandemia existem falcatruas do Oiapoque ao Chuí.
    Mudanças culturais, naturais ou artificiais, acontecem, coisas da vida. E dependendo do caso não se pode falar no assunto. Funk carioca, por exemplo. Derivado do gangsta rap e Miami Bass. Funk ostentação derivado do Bling-bling.

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