#FiqueEmCasa
Por ORLANDO FONSECA (*)
Segundo a narrativa bíblica, o patriarca Noé e sua família passaram 40 dias de chuva torrencial em um barco construído por ele. Não deve ter sido muita coisa, a considerar que ele passou 120 anos construindo aquele que deveria ser o seu lar e o de trocentos casais de bichos. Do lado de fora, a coisa não era nada boa, simplesmente um dilúvio.
O mundo que ele havia deixado lá, ao entrar na arca, seria outro quando finalmente saísse dali. Ele não tinha TV para se entreter com a programação, nem maratonar nas séries da Netflix; não dispunha de internet, para acionar os contatos das redes sociais – que não haveria, pois a sua era formada por quem estava abrigado da tempestade, e só. Mas, com certeza, tinha com que se ocupar durante aqueles dias, sem se preocupar com o tempo. Só o fez quando cessou o aguaceiro, e foi verificar se já havia terra seca.
Estou, estamos – minha família, meus amigos e alguns poucos bichos de estimação – em uma quarentena, que talvez não dure quarenta dias. O certo é que lá fora, mais do que um dilúvio, temos uma tempestade de coronavírus. Noé foi avisado pelo próprio Todo Poderoso a respeito das intempéries. Por aqui, temos sido avisados pela OMS, pelas autoridades de saúde na administração pública – um todo-poderoso até tentou mandar, mas, embora tenha nome, é um profeta fake.
A ordem é ficar em casa até que o tsunami de contágio arrefeça, pois não haverá arca no SUS suficiente se todo mundo acorrer contaminado para as unidades de atendimento. As más novas continuam, e aqueles que não atenderam às admoestações médicas já pagaram com o preço da própria vida.
Assim como Noé, ridicularizado pela vizinhança, poderia desenvolver uma desconfiança em relação ao que demorava a acontecer (ele se manteve firme), muitos parecem estar descrentes de que há uma pandemia cercando o planeta. De que é uma histeria coletiva tanta gente de máscaras pela rua e trancadas em casa.
Até concedo que há muitos sem outra alternativa, pelo trabalho, por não terem outra forma de alcançar itens básicos de sobrevivência. No entanto, ver gente simplesmente caminhando, passeando por praças e parques é desalentador em termos de crença na humanidade.
Não imagino que tivesse janelas na arca, e isso até deve ter ajudado Noé e os seus a não verem o destino trágico dos que desconsideraram as previsões do tempo. E olha que àquela época não havia satélites, então, eram as informações quentes vinda de cima o que tinha de melhor.
Talvez Noé não tivesse a credibilidade necessária. Se bem que agora temos computadores, dados estatísticos, notícias sobre a realidade momentânea no mundo, e mesmo assim há os que não dão a mínima. Considere-se também que há os que acreditam que a Terra é plana.
Não temos um dilúvio, capaz, segundo a narrativa bíblica, de destruir o planeta. Não precisamos acreditar em profetas, não temos necessidade de nos aterrorizar com previsões apocalípticas. No entanto, não há registro na história recente da humanidade, de uma epidemia com estas proporções, com um grau de letalidade tão grande que é capaz de dizimar uma população desapercebida, em pouco tempo.
Dispomos de todas as condições para nos precavermos, e o que nos ensina a prudência é justamente olharmos o que acontece com os demais, para nos prepararmos para enfrentar um inimigo invisível, que, com toda certeza chegará. Não sabemos se com a mesma força do que na China, Europa ou Estados Unidos.
O que não cabe, nos tempos atuais, é ficar sem cuidado. Pois não se trata, simplesmente, de cada um salvar a sua própria pele. Em nos protegendo, estaremos protegendo os nossos irmãos, nossos amigos.
Depois dos quarenta dias, podemos enviar uma pomba, que traga uma folhinha verde, e assim que o corvo voar sem retornar, poderemos voltar e pisar em terra firme, em terra seca e saudável, para nos congraçarmos com todos, sob o arco da esperança, da promessa de novos tempos de fraternidade.
(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.
Observação do editor: a imagem que ilustra esta crônica é uma reprodução da internet (Pixabay).
Como sempre ótima crônica!
Será que não copiaste de uma pedra ou de um papiro,Orlando Fonseca?
Gripe espanhola atingiu um terço da população mundial. Falam em 50 milhões de mortos. Tudo isto no começo do século XX.
Covid matou algo como 115 mil pessoas. Obvio que reduzir mortes a estatística não é algo trivial, mas é menos do que a soma de homicídios e mortes em acidentes de trânsito no Brasil. Alás, população mundial é de 7,5 bilhões de pessoas.
Geralmente as pessoas não têm noção de escala. Acham que é ‘só colocar três zeros’, sem notar que para cada um que existia antes depois do acréscimo existem mil. Mil segundos são 17 minutos. Um milhão de segundos são 12 dias (arredondando). Um bilhão de segundos são 32 anos.
Segundo aspecto é o tratamento dado a situação toda. Itália é diferente de NY que é diferente de SP e POA. Todas diferentes da Bossoroca. Ou de Cacequi. Os ‘gênios’ da mídia pressionam para um tratamento isonômico de todos os lugares. Alás, ficam dando sugestões do tipo ‘vamos fazer testes em massa’ como se fosse fácil. Não existe grana e nem testes, o Reino Unido tenta implementar a politica (tem grana e menos gente) sem sucesso. A logística da coisa é difícil.
Outra dos ‘gênios’: para cada caso confirmado existem quatro não notificados. É suposição tratada como realidade. Sem evidencias.
Dai aparecem pesquisas por aí. Quando se coloca uma gota de tinta solúvel num balde a maior parte da água está limpa. Dado um certo tempo a tinta se espalha por todo o liquido. Qual a taxa de difusão? Depende da água e da tinta. Única certeza é que não é instantâneo. Por isto que teste por amostragem é um tiro no escuro.
O fim do mundo não pode ficar eternamente para o mês que vem. Pessoas ‘não seguindo recomendações’ são adultas. E aqui, ao menos por enquanto, não é como na China.