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ARTIGO. Leonardo da Rocha Botega e 100 anos de Florestan Fernandes, um grande ‘intérprete do Brasil’

Florestan Fernandes: 100 anos de um intelectual com “experiência militante magra”

Por LEONARDO DA ROCHA BOTEGA (*)

“Sou acima de tudo, um intelectual com uma experiência militante magra, de uma dezena de anos, nas condições de uma ditadura ultra-repressiva (a do Estado Novo) e uma prática acadêmica mais profunda e marcante”. Foi desta forma que Florestan Fernandes se descreveu no Prólogo do livro “O socialismo legalista”, de Adelmo Genro Filho. Obviamente, quem se debruçar sobre as suas obras e a sua trajetória verá que foi muito mais do que isso. Reconhecido recentemente por José de Souza Martins como “o mais erudito dos cientistas sociais brasileiros”, Florestan foi acima de tudo um dos grandes intérpretes do Brasil.

Ao longo de sua vida, teoria e prática caminharam conjuntamente. Nascido em 22 de julho de 1920, em São Paulo, diferentemente de Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, Florestan não tinha origem familiar aristocrática e nem na classe média. Sua mãe era uma imigrante portuguesa que viera para o Brasil para escapar da fome. Maria Fernandes era “mãe solteira” e empregada doméstica em uma sociedade patriarcal e conservadora. Seu filho estudou somente até o terceiro ano primário. Com 9 anos de idade, Florestan abandonou os estudos para trabalhar, foi auxiliar de barbearia, engraxate, garçom, vivendo o que ele chamou posteriormente de “uma vida lúpen-proletária”.

Retornou aos estudos somente aos 17 anos, completando o Ensino Secundário em um curso de madureza (equivalente a atual Educação de Jovens e Adultos). Foi nesse retorno em meio aos “iguais” (jovens trabalhadores com uma vida dura) que descobriu o sentimento de que podia romper com a situação de degradação social que vivia. Fascinado pelos livros que haviam na casa da “madrinha” Herminia Bresser, Florestan foi um estudante dedicado. Essa dedicação foi fundamental para superar o seu atraso, quando ingressou, em 1941, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.

A dedicação, o rigor e a forma criativa como tratava os seus estudos, fez com que fosse reconhecido pelos principais professores da faculdade. Quando estava prestes a se formar, tornou-se segundo assistente na cadeira de Sociologia 2, dirigida por Fernando Azevedo. Alguns anos depois se tornaria diretor da cadeira de Sociologia 1, substituindo o francês Roger Bastide, com quem escreveu uma de suas principais obras, “Brancos e Negros em São Paulo”. Orientou estudantes que depois se tornariam grandes sociólogos, como Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Marialice Foracchi, Luiz Pereira, Maria Sylvia Carvalho Franco, Leôncio Martins Rodrigues, José de Souza Martins e Gabriel Cohn. Porém, seu grande mérito foi ter sido responsável por produzir “novos padrões de feitura” nas pesquisas sobre a sociedade brasileira.

Seu rigor metodológico fez com que vários clássicos do pensamento sociológico, como Émile Durkheim, Max Weber, Karl Mannheim e Karl Marx, dialogassem não apenas com objetos de estudo escolhidos, mas com a própria realidade vivenciada e vivida pelo autor. Florestan foi implacável em suas sínteses sobre as mazelas da sociedade brasileira. A formação histórica do capitalismo dependente havia produzido um país onde as velhas estruturas escravistas absorveram as novidades sem grandes rupturas. Dessa forma, criou-se uma sociedade onde conceitos liberais-burgueses como democracia, igualdade, liberdade e mérito, não têm nenhuma amplitude social diante de uma aristocracia-burguesa dominante que sempre está disposta a jogá-los fora quando o seu status se vê minimamente ameaçado, como no Golpe Civil-Militar de 1964.

Florestan foi atingido diretamente pela Ditadura. Afastado da USP com base no AI-5 em 1969, exilou-se no Canadá onde foi professor titular na Universidade de Toronto. Retornou ao Brasil quando da redemocratização e foi um brilhante deputado federal, sobretudo, na defesa da educação. Na madrugada de 10 de agosto de 1995, veio a falecer, semanas depois de ter sido submetido a um, “até então bem-sucedido”, transplante de fígado. Após uma autopsia judicial ficaria comprovado um erro médico (uma falha no sistema de hemodiálise). O intelectual militante, que sempre recusou qualquer privilégio por sua condição de figura pública e deputado, foi vitimado pelas estruturas sociais que tanto denunciou através de seus estudos. Morreu na saúde pública, vitimado pela forma com que um Estado capturado por elites parasitárias trata o seu povo.

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

Observação do editor: A foto (sem autoria determinada) que ilustra este artigo – de Florestan Fernandes, em um protesto em defesa da educação, em 1988 -, foi extraída do portal “Outras Palavras” (AQUI, no original).

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