Cem mil
Por LUCIANO DO MONTE RIBAS (*)
Há dois anos vivi uma experiência muito difícil e me permito aqui relatá-la, brevemente.
Um grande amigo (daqueles com quem fazemos até o que não devemos), um ano mais jovem do que eu, vivia os últimos dias de uma longa luta contra o câncer e sua companheira me chamou para que me despedisse.
Fui visitá-lo no hospital sem saber o que dizer ou o que fazer. Em nossa cultura não somos educados a entender a morte, sobretudo se ela for de uma pessoa no auge das suas capacidades. Mas eu sabia que precisava ir e que esse simples gesto, especialmente dentro da forma como ele e sua família estavam conduzindo tudo, tinha a sua importância.
Meu amigo estava lúcido e cercado pelas pessoas mais próximas. Conversamos sobre memórias, contei para sua filha algumas coisas que fizemos juntos, lhe abracei sem verbalizar um adeus, abracei seu irmão e sua mulher. Me despedi pensando em voltar, mas não consegui. Duas semanas depois recebi uma mensagem dizendo o quanto ele gostava de mim e que havia “desistido”. Naquela noite tudo se resolveu, por assim dizer.
Com quarenta e poucos anos, meu camarada nos deixou. Mas, ao menos, houve um longo período de preparação e de “aceitação”. Há outras situações onde isso inexiste e, ao acontecerem essas perdas abruptas, elas costumam ser acompanhadas por traumas muito mais sérios. Vivi isso quando outro grande amigo nos deixou, há quase dez anos, e, para mim, pareceu ser uma dor ainda mais sem sentido.
Indo adiante, fiz esses “relatos” para tentar trazer para uma dimensão pessoal o que mais de 100 mil famílias viveram desde fevereiro, tendo entes queridos vitimados pela covid-19. Acho importante esse exercício de buscar na história pessoal experiências análogas porque números são frios e, quando são tão grandes como esse, parecem ainda mais distantes. Sem um rosto e sem um nome, somos apenas estatísticas.
Evidentemente, ninguém vive a dor das outras pessoas, mas apenas alguém desprovido de humanidade é incapaz de demonstrar empatia com quem sofre. A bem da verdade, um ser humano que mereça ser definido por esse substantivo jamais diria algo como “e daí?” para um assunto tão doloroso, não é mesmo?
Infelizmente, porém, essas criaturas existem e algumas delas possuem poderes suficientes para piorarem as coisas, tanto por seus atos quanto por suas omissões. Com seu desprezo, sua promoção da ignorância, sua irresponsabilidade criminosa e seu exemplo torto, Bolsonaro, Trump e outros menos conhecidos deram à pandemia uma moldura trágica e ajudaram a “engordar” a colheita da ceifadora. Cinicamente, nos dizem para simplesmente “tocarmos a vida”, como se nenhuma responsabilidade tivessem e as perdas fossem insignificantes detalhes…
Canalhas é o que são: Bolsonaro, Trump e os “menos conhecidos”, incluindo todas as pessoas que seguem menosprezando, relativizando e apostando apenas na morte “dos outros”. Não há meio termo, não há perdão, não há reconciliação possível sem que os crimes e os “pecados” sejam confessados e purgados. Há, sim, uma linha que divide os que, simbolicamente, gritam “Viva la muerte” (como faziam os fascistas espanhóis) e quem coloca a defesa da vida acima de tudo. Escolha o seu lado e assuma as consequências.
(*) Luciano do Monte Ribas é designer gráfico, graduado em Desenho Industrial / Programação Visual e mestre em Artes Visuais, ambos pela UFSM. É presidente do Conselho Municipal de Política Cultural e um dos coordenadores do Santa Maria Vídeo e Cinema, além de já ter exercido diversas funções na iniciativa privada e na gestão pública.
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Observação do autor, sobre a foto: parede do Palácio de La Moneda bombardeada no golpe fascista contra Salvador Allende e, posteriormente, reconstruída (Santiago do Chile).
Surgiu nos fóruns de debate por ai um neologismo. ‘Sinalização da virtude’. ‘Açao ou pratica de expressar publicamente sentimentos ou opiniões com a intenção de demonstrar bom caráter ou correção moral da posição de alguém em determinado assunto’.
Primitivo, se ‘eu sou bom e correto’, meus adversários/inimigos só podem ser ‘do mal e errados’.
‘Em nossa cultura não somos educados a entender a morte […]”, ‘nossa’ de quem cara-pálida? ‘Não somos educados”? Educação é atividade passiva, é algo que nos acontece?
Para quem acha que ler um livro resolve, ‘Sobre a Morte e o Morrer’ de Elisabeth Kubler-Ross é a dica.
No século XVII, semanas antes de morrer, o samurai Miyamoto Musashi escreveu o ultimo livro, Dokkōdō, ‘O Caminho da Solidao’. Obviamente tem muito do Zen, mas para quem sabe um pouco de filosofia não vai deixar de notar a semelhança com o estoicismo (encorajado nos meios militares, ainda que inconscientemente).
Alguns princípios do autor. ‘Aceite tudo como é’. ‘Não lamente o que fez’. ‘Não tenha receio da morte’.
Resumo da opera: cultura, valores e princípios não são generalizações feitas em gabinetes.