O Fetiche Antiestado contra a Constituição Brasileira
Por LEONARDO DA ROCHA BOTEGA (*)
Em seu livro de memórias, A lanterna na popa, Roberto Campos, ao comentar a aprovação da Constituição de 1988 chamou atenção para a forma como o jurista Miguel Reale a chamou: um ensaio de “totalitarismo normativo”. Em que pese a idiossincrasia de tal terminologia, ali estava não apenas um dos primeiros ataques à nova Carta Magna, como também a síntese do programa da “nova direita” brasileira: o Fetiche Antiestado. Ao mesmo tempo, a declaração demonstra que, mesmo derrotado na Assembleia Constituinte, tal programa soube apontar o seu principal adversário: o Estado de Bem-Estar Tardio ali formulado.
A Constituição de 1988 nasceu de um dos mais significativos processos cívicos-políticos da História do Brasil. A nação que alguns anos antes teve negado o seu direito de escolha direta do president rompia o sufoco do autoritarismo e mergulhava nos debates sobre os seus rumos. Depois de 19 meses de intensos processos de negociação e debate político, a Nova Carta Magna materializou um profundo sentimento de pacto social.
Mesmo com limites, os chamados artigos sociais a serem eternamente regulamentados (como o da função social da propriedade), a nova Constituição teve méritos gigantescos, entre eles a profissionalização das políticas públicas a partir da estabilidade dos servidores públicos e a criação de um sistema de seguridade social público.
A profissionalização das políticas públicas a partir da estabilidade dos servidores públicos encaminhou um processo de ruptura com práticas seculares de clientelismos enraizadas no âmbito das relações entre o Estado e a cidadania no Brasil. O ingresso por concurso público reduziu as práticas de apadrinhamento político e uso político-pessoal do Estado, ao mesmo tempo em que criou uma estrutura permanente de funcionários públicos garantidores de políticas que, para além dos governos, são políticas de Estado. A criação de uma estrutura de seguridade social pública foi um marco na luta contra práticas obscuras de dominação dos mais pobres por aqueles que possuíam acesso aos bens públicos.
Apesar de vitoriosa diante dos ataques iniciais, a Constituição de 1988 não teve nem tempo de ser maturada. Desde a posse de Fernando Collor de Melo em 1990, o Fetiche Antiestado foi ganhando força na mesma medida em que seu principal porta voz, o financismo, ia se tornando hegemônico.
Nos últimos 30 anos, os ataques à Constituição de 1988 foram em maior ou menor intensidade, conforme a força da pressão que o financismo teve sobre os governos. Quando a conjuntura os fazia recuar, as políticas públicas avançavam; quando a conjuntura os fortalecia, as políticas públicas recuavam ou eram colocadas aos seus serviços. Quando o governo não servia mais, eles mandavam golpear. Não importa o preço, o fetiche deve ser realizado.
O principal argumento do Fetiche Antiestado tem sido os “gastos excessivos do governo”. Um argumento que esconde o fato de que, nas últimas décadas, em média 43% do orçamento da União tem sido usado para pagar juros e amortizações da dívida. Um percentual que vai diretamente para o sistema financeiro e que “milagrosamente” não diminui à medida em que os tão criticados “gastos” são reduzidos.
Um argumento que esconde que nas últimas décadas o país só teve crescimento significativo quando o Estado investiu. Um argumento que esconde que entre 2011 e 2014, o governo brasileiro repassou R$ 270 bilhões em incentivos fiscais para que o setor privado impulsionasse a economia e que boa parte destes incentivos foi para o sistema financeiro. Um argumento que esconde que quem mais tem lucrado é justamente quem mais o propaga: o financismo.
Para garantir esse lucro é que o Fetiche Antiestado encontrou sua forma mais radical: a Reforma Administrativa proposta pelo ministro-banqueiro Paulo Guedes. Uma proposta que urra contra o que chama de “privilégios”, mas deixa de fora as altas carreiras do Estado.
Uma proposta que branda modernidade, mas recria os velhos métodos de “cabide de emprego” da República Velha, fazendo a alegria do “Centrão”. Uma proposta que distancia cada vez mais o tão desejado encontro entre o Estado, as políticas públicas e a cidadania brasileira. Uma proposta que põe definitivamente uma pá de cal sobre a Constituição de 1988.
(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).
Observação do editor: a imagem aqui publicada é uma reprodução obtida na internet.
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