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ARTIGO. Leonardo da Rocha Botega, o fator humano, “roupas de marca daquele menino” e Dia do Professor

Educar diante do Desencanto

Por LEONARDO DA ROCHA BOTEGA (*)

Ser professor ou ser professora é sobretudo colecionar contatos humanos. São os contatos humanos que remetem a essência da educação que, muito mais do que uma atualização para a vida profissional, é (e sempre será) uma troca de vivências culturais que faz emergir a perspectiva de humanidade. Se assim não for pode se mudar o nome da atividade para domesticação ou adestramento. Sem um sentido humano não existe educação e não existe o educador ou a educadora.

Inserido em uma atividade de humanização, aquele que educa é também um colecionador de Histórias. O professor ou a professora são “ouvidores” por essência. É na escola, na sala de aula, no corredor ou até mesmo no pátio, que muitos/as estudantes percebem o quão o professor ou a professora está disposto a lhe ouvir. Na escola muitas vezes o/a estudante sente um vento de humanidade que, muitas vezes, não tem na sua própria casa. É através deste vento de humanidade que as Histórias aparecem. Algumas lindas, de superação, de dedicação e de afeto. Outras nem tanto.

Uma destas Histórias eu ouvi há quase duas década em uma escola da periferia da cidade. Quem me contou foi um menino, um pré-adolescente silencioso, de pouco sorriso, de poucos amigos. Após algumas semanas do início do ano letivo, aquela postura incomum me deixava perturbado, uma timidez aparentemente forçosa e forçada por alguma circunstância que fugiu ao que me era aparente. Não me recordo como, se foi em alguma conversa sobre o Rap ou sobre o Internacional (duas paixões comuns a esse professor e a muitos de seus alunos), mas em algum momento consegui quebrar aquele silêncio. Não lembro muito bem a circunstância, mas o diálogo sim.

As roupas de marca daquele menino sempre me chamaram atenção e de alguma forma notei que sua presença era muito respeitada pelos demais. Em nosso pequeno diálogo consegui indagar sobre sua vida fora da escola. Surpreendentemente, aquela timidez aparente desapareceu e passei a ouvir o relato da contradição entre afirmação e exclusão. O menino me falou que trabalhava como uma espécie de vigia para os traficantes de sua rua. No período em que não estava na escola ficava no topo de uma colina onde era possível ver toda a movimentação e de lá ele alertava com fogos quando algo parecia estranho (como a chegada da polícia). Indaguei ele sobre o perigo do que fazia, ele me respondeu: “é um trabalho”. Perguntei se valia a pena aquele trabalho, se ele não tinha medo dos riscos que podia correr. Ele respondeu: “Professor, eu sei que não é certo, mas com esse trabalho eu consigo aquilo que meu pai nunca teve e nunca vai conseguir ter”.

O menino me falou que o pai era auxiliar de pedreiro e que, mesmo sendo um homem que ainda não tinha chegado a meia idade, parecia um velho. Falou também que no seu trabalho ganhava por semana o que o pai ganhava em um mês, que conseguia comprar roupas “maneiras” e que até as “meninas do centro” olhavam para ele. Arrematou dizendo: “elas não olham para os mulambos da minha rua, até os ‘homens’ não me dão mais ‘atraque’”. Perguntei sobre como ele via o seu futuro, o que queria fazer? A resposta foi dolorida: “Eu queria ser Veterinário, mas isso não é para nós”.

Aquela História me fez ficar dias e dias remoendo uma angustia e uma sensação de impotência tremenda. Naquele local onde a esperança deveria brotar, das palavras daquele jovem brotou o desencanto. Que alternativas um professor que sempre lutou por alternativas poderia propor àquele jovem? Estudar? Sim, mas estudar parecia algo abstrato naquela realidade que todo dia batia a porta de alguém que só conseguiu vislumbrar uma imagem positiva de si na ilegalidade. A cidadania do ilegal era mais forte do que a cidadania sonhada.

Pablo Gentile e Chico Alencar, no fabuloso “Educar na esperança em tempos de desencanto”, afirmam que a corrosão da consciência de uma nação ocorre quando as pessoas transformam em “normal” as anormalidades existentes na sociedade. A História daquele jovem para alguns poderá parecer “normal”. Para aqueles que falam em meritocracia em uma sociedade onde para muitos fazer uma refeição é o único mérito possível. Para aqueles que não conhecem o cotidiano perverso que, muitas vezes, se oculta por entre os muros das escolas, mas mesmo assim julgam e adjetivam os professores e as professoras. Aqueles que exigem uma qualidade competitiva e renegam a qualidade humana. Aqueles que não dão a mínima para o fato de que cerca de 66% dos professores e das professoras já tiveram que se afastar do trabalho por problemas de saúde, na maioria das vezes problemas de saúde mental. Aqueles que dizem ser a favor da educação, mas sempre são contra as lutas dos educadores. Desses eu não espero, não desejo e não aceito Um Feliz Dia do Professor!

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

Observação do editor: a imagem (sem autoria determinada) que ilustra este artigo é uma reprodução da internet. Ela está disponível no SITE do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina.

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