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Livres para escolher – por Márcio Grings

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Ele já estava recostado ao sofá há quase 50 minutos. Nesse momento, de olhos bem fechados. Ela, a terapeuta, discursa com propriedade e invejável confiança. Como se fosse uma fala programada para determinar a verdade absoluta das coisas:

“O fluxo era o mesmo. Eram duas ruas paralelas sem nenhuma conexão. Havia algo invisível no ar, movido pela fúria de um carro sem freios. Aí rola a pancada! Ruptura. Esses acidentes de percurso são doloridos. A dor também pode ser vista como um agente de transformação. Voltando… Houve esse acidente de percurso, sabemos, era inevitável! Por definições humanas e instituições hipócritas criadas pelo próprio homem, somos craques em nos autocomplicarmos. Óbvio! Se tomarmos por base o nível existencial… Ah diabos! Tudo seria mais fácil. A ótica da razão é uma tolice. Você precisa abandonar os penduricalhos, velhos estigmas e condutas pré-estabelecidas”.

Ele abre os olhos e vê uma plaquinha dourada sobre a mesa que diz: “Natália Gatling – Terapeuta”. Fecha as pálpebras de novo. Miss Gatling prossegue:

“No entanto, como sabiamente nos diz Pablo: ‘Nós somos livres pra escolher e prisioneiro das consequências de nossas escolhas’. É muita pretensão alimentar o desejo de reduzir alguém no cercado de um relacionamento. Pense bem, humanamente, isso é impossível! Afinal, ninguém manda em ninguém. E aí eu te pergunto: como controlar o que se passa dentro de cada um de nós? Como? O que se vivencia é um momento único compartilhado, muitas vezes sublime. Ponto. Vire a página e pense que um novo capítulo pode se iniciar. Vírgula. Você compreende o que eu quero dizer?”, pergunta a terapeuta.

Ele balança a cabeça dizendo que sim. Contudo, seus pensamentos giram igual uma broca minúscula tentando furar uma parede de concreto instransponível. Miss Gatling fica observando seu paciente com um misto de austeridade e compaixão. Tá na cara que ela percebe com clareza o rodopiar dos pensamentos do pobre cliente. Então, resignada, suspira discretamente e continua:

“Elmo, seguinte: vou te receitar um remedinho. Algo leve, pra você se sentir mais relaxado e tranquilo durante os próximos dias. E não esquece: nada de se punir e achar que a culpa é apenas sua! Tenho algo a te propor na quinta que vem. Nos vemos na próxima semana, okay?”.

Ele concorda num quase imperceptível movimento de cabeça. Pega a receita, dobra simetricamente o papel e o envelopa dentro da carteira. Aperta a mão de Miss Gatling e agradece num tom mudo. Cruza pela secretária sem dizer adeus. Em frente ao elevador, fica vendo as luzes piscando. Os olhos embaralham e ouve um zunido dentro de si. Como se fosse algum tipo de plástico se chocando contra um aro de uma bicicleta.

Antes de entrar no elevador, joga a receita no lixo em frente ao consultório. “Nós somos livres pra escolher e prisioneiro das consequências de nossas escolhas”. A frase de Neruda fica retumbando dentro dele.

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