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Carmem de Patagones, a batalha esquecida – Por Ricardo Ritzel

Um fantástico episódio de uma guerra vencida pelos gaúchos. No entanto...

Caballería Gaucha, em Carmem de Patagones, derrotou a Marinha Imperial brasileira reforçada por mercenários ingleses

O período revolucionário rio-grandense é fruto direto das guerras gaúchas. Sua genealogia bélica nasce com as montoneras charruas do século XVII e passa sua infância nas disputas por Colônia do Sacramento e nas Guerras Guaraníticas.

Sua adolescência começa na Guerra de Restauração do Rio Grande e segue crescendo na Conquista das Missões, nas guerras de independência hispânicas, nas Campanhas Platinas de 1810 e 1820, na Guerra Cisplatina, culminando no decênio 1835-45 com a Revolução Farroupilha.

A sua vida adulta inicia com a Campanha contra Oribe e Rosas, a invasão do Uruguai e a Guerra do Paraguai, atingindo seu ápice na Revolução Federalista de 1893.

Sua maturidade é marcada pelas patriadas de Aparício Saraiva na Banda Oriental, uma estranha paz no Rio Grande do Sul, seguida pela Revolução de 1923, os levantes tenentistas de 1924, 25 e 26 e a Revolução de 1930 e a contrarrevolução de 32.  

São mais de 300 anos de batalhas, combates e refregas inseridas na história de uma sociedade pastoril formada por índios, brancos e negros na grande planície da América Meridional. Praticamente, viviam em guerra.

Neste contexto de mais de três séculos, uma batalha esquecida pela historiografia brasileira demonstra bem a maliciosa forma de combate desse povo que se acostumou a lutar contra três dos maiores e mais poderosos impérios da época: o português, o espanhol e, depois, o Império do Brasil, além de brigar entre eles mesmo.

Está história começa em 19 de abril de 1825, quando Juan Antonio Lavalleda e outros 32 orientais emigram de Buenos Aires e retornam a Montevideo, dando início a uma guerrilha que tinha como objetivo maior a libertação da Província Cisplatina (Uruguai) do jugo brasileiro.

Estandarte imperial exposto até hoje na Igreja Matriz de Carmem de Patagones, feito troféu de guerra por gaúchos lutando contra um poderoso império

Logo, a revolta recebe o apoio do caudilho Fructuoso Rivera, e sua gente, assim como também da República das Províncias Unidas do Rio da Prata, culminando com a reincorporação da Banda Oriental do Rio Uruguai ao mando de Buenos Aires no dia 25 de outubro daquele mesmo ano.

A partir daí a revolução se transforma em guerra aberta com o Império brasileiro, tendo como teatro de operações todo o Uruguai e o sul do Rio Grande, assim como quase toda a costa atlântica da America do Sul, desde os mares tropicais até a Patagônia.

A guerra no mar contra o Brasil foi organizada e liderada pelo famoso almirante inglês, William Brown, e tinha como objetivo cortar as comunicações marítimas brasileiras, bloqueando seus portos e interrompendo o seu comércio com os demais países.

E contra a poderosa Marinha Imperial e seus mais de 100 buques repletos de canhões, Brown criou uma estratégia simples, mas maliciosamente eficaz pelos seus golpes táticos: pediu e ganhou de Buenos Aires cartas de corso para atrair experimentados capitães europeus e suas tripulações, como também pequenos, mas velozes embarcações que se aproximavam de seus alvos com incrível rapidez, atacavam e, logo depois, se afastavam com a mesma surpresa e velocidade que surgiam.

Logo, o Atlântico sul se transformou em um inferno para marinha mercante brasileira. Os pesados navios de guerra do Império não conseguiam acompanhar a velocidade da frota pirata das Províncias Unidas do Prata, que chegaram até mesmo a navegar entre os navios de guerra que traziam o Imperador Pedro I para acompanhar de perto a disputa pela Cisplatina e seus problemas.

O episódio aconteceu nos primeiros raios de sol da manhã do dia 29 de novembro de 1826. O imperador vinha ao sul escoltado por 13 navios de guerra, quando, ao dissipar do nevoeiro, os marinheiros imperiais perceberam que estavam perigosamente ao alcance dos canhões de duas corvetas argentinas, a Chacabuco e a Sarandi, que, imediatamente, começaram a trocar tiros com a frota brasileira.

A corveta Sarandi deu uma demonstração de sua velocidade e rapidamente se afastou, mas a Chacabuco comandada pelo temível capitão Bynon, levantou no mastro a bandeira argentina e enfrenta, com seus 22 canhões e uma aguerrida tripulação de 75 homens, toda a esquadra do imperador.

A refrega marítima durou quase três horas e finalizou com vários navios brasileiros avariados e nenhum tiro atingindo a corveta corsária que, como surgiu, se foi.

O golpe foi duríssimo e bastante sentido. Tanto que o próprio imperador elogiou em seu Itinerário de Jornada a beleza da corveta que realizou a proeza, assim como sua rapidez. E também desembarcou em Desterro (atual Florianópolis) junto com sua comitiva e fez o resto da jornada até Porto Alegre á cavalo por estradas e caminhos bem distantes do oceano.

E assim, entre derrotas e vexames, a poderosa Marinha Imperial passou os três anos da Guerra Cisplatina, sem ao menos conseguir se aproximar das embarcações corsárias, quanto mais proteger os portos e a marinha mercante que operava no litoral brasileiro. Mesmo com o Rio da Prata repleto de navios de guerra e o porto de Buenos Aires bloqueado e inoperante.

Vista panorámica de Carmen de Patagones 1829 (ao sul da Província de Buenos Aires) (Desenho de Alcide d’Orbigny)

Porém, um informe da inteligência brasileira chegou à corte, onde apontava o porto e o forte de Carmem de Patagones, a cidade mais ao sul da Província de Buenos Aires, como base dos corsários argentinos. Lá eles faziam, com segurança, a repartição do butim, os reparos nas embarcações, se abasteciam e descansavam.

A informação foi tentadora para Marinha Imperial, sedenta de desforra. Logo começaram a planejar com esmero e detalhes um ataque direto e com grande poder de fogo a cidadela pirata. Mas não contavam com um problema sério para o plano ser exitoso: a gauchada que habitava o local.

A cidade de Carmem de Patagones foi fundada pelo Império espanhol em meados do século XVIII em pleno território indígena, há trinta quilômetros da foz do Rio Negro. Seus primeiros colonizadores foram militares e habitantes da Maragateria, dando origem ao gentílico maragato.

Depois, foram chegando os gaúchos para trabalhar nas estâncias e saladeros (charqueadas) que proliferaram na região. Em seguida, os negros africanos foram enviados para ajudar na atividade pastoril, já bastante lucrativa e em franco desenvolvimento pelo comércio externo de carne e couro da ainda incipiente república, agora livre do monopólio comercial espanhol.

Assim, a fim de cumprir o objetivo de tomar o local e destruir o porto seguro dos corsários argentinos, uma frota foi formada no Rio de Janeiro com duas corvetas, uma escuna e uma galé, tendo cerca de 600 marinheiros e infantes, sendo que destes, 250 eram mercenários ingleses. Para o comando, e pago a peso de ouro, foi contratado os serviços do célebre capitão de fragata inglês, James Shepherd.

No dia 28 de fevereiro de 1827, a frota chega a foz do Rio Negro e, maliciosamente, troca a bandeira imperial pelo estandarte das Províncias do Prata. O ardil foi rapidamente descoberto pelos vigias do rio, que rapidamente informam ao comandante do forte de Carmem de Patagones, coronel Martin Lacarra, que navios brasileiros fortemente armados se dirigiam a cidade.

A esquadra brasileira tinha tanta certeza do sucesso de sua empreitada que, o comandante Shepherd levava no bolso uma carta de rendição dos corsários, com promessas de não haver represálias nem atrocidades em caso de rendição.

Mas já nos primeiros quilômetros navegados no Rio Negro, a corveta Duquesa de Goiás encalha, ficando presa em um banco de areia pelo seu alto calado. Seus tripulantes são transferidos para outras embarcações. A corveta é logo tomada pelo inimigo que se apodera também de mais de 20 canhões que ficaram para trás.

Tão logo o coronel Lacarra recebe a notícia do iminente ataque imperial, percebe que os pouco mais de duzentos soldados a seu mando não fariam frente aos brasileiros e convoca para a batalha outros 100 gaúchos á cavalo que trabalhavam nas estâncias da região e eram liderados por “um tal” José Luis Molina, assim como todas as mulheres e jovens de Carmem de Patagones e vizinhança.

O primeiro ato da batalha foi as mulheres e crianças se vestirem de ponchos e colocarem chapéus de couros, levando espadas, lanças e paus para se postarem as margens do rio. A ideia era criar a falsa aparência de um grande contingente de guerreiros.

Deu certo. Os marinheiros brasileiros desistiram de desembarcar nas proximidades da cidade e, sem conhecer o local, saíram de suas embarcações direto para um terreno pedregoso, alagado e bastante espinhoso.

O resultado foi uma cansativa caminhada entre espinhos pela tropa brasileira, com várias idas e vindas por completo desconhecimento do terreno, não faltando oficiais serem carregados nos ombros pela soldadesca.

A corveta corsária argentina Chacabuco levou o terror aos portos e navios mercantes do litoral brasileiro

Neste momento, para maior sofrimento dos invasores, os soldados argentinos colocaram fogo no campo espinhoso, provocando uma maior desorientação da tropa brasileira, já bastante abatida e com a moral em frangalhos.

Todos chegaram completamente exaustos ao local escolhido para a batalha pelos próprios defensores da cidade: o Cerro da Caballada , onde se entrincheiraram. Na frente,um campo levemente ondulado, próprio para cargas da cavalaria do vaqueano Molina e seus gaúchos, índios e negros.

Foi um massacre!

E o primeiro a morrer foi o próprio comandante geral da expedição, capitão James Shepherd, que recebeu um tiro certeiro antes mesmo da primeira carga dos lanceiros gauchos. E ela veio…

A rendição também foi rápida e sem a menor negociação. Nem tinha como.

Além das mortes, feridos, prisioneiros e deserções, os mercenários ingleses que sobreviveram aceitaram trocar de lado, as embarcações e seus canhões caíram direto nas mãos dos corsários e sete bandeiras imperiais foram levadas para o forte de Carmem de Patagones como troféus de guerra.

Hoje, quase duzentos anos depois, restam apenas duas delas ainda intactas. Uma no museu do forte e outra na igreja matriz da cidade.

Na década de 90 do século passado, a Argentina tentou devolver uma delas ao Brasil como sinal de amizade e boa vontade, mas a população de Carmem de Patagones reagiu energicamente e não permitiu que o estandarte saísse da cidade.

A Batalha de Carmem de Patagones é tida como uma das grandes proezas das Províncias Unidas do Prata, assim como a Batalha do Passo do Rosário, chamada por eles de Batalha de Ituzaingó. As duas foram derrotas doloridas e o preço pago por uma guerra maluca, iniciada pela megalomania de Pedro I.

Enfim, mais uma guerra na América Meridional, desta vez vencida por gauchos, índios e negros. A nossa história, só que do outro lado da fronteira.

(*) Ricardo Ritzel é jornalista e cineasta. Apaixonado pela história gaúcha é roteirista e diretor do curta-metragem “Gumersindo Saraiva – A última Batalha”. Também é diretor de duas outras obras audiovisuais históricas: “5665 – Destino Phillipson”, e “Bozzano – Tempos de Guerrra”. Ricardo Ritzel escreve neste site aos sábados.

Observação do Editor: as fotos que ilustram este texto são reproduções do acervo pessoal e da biblioteca do autor.

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Um Comentário

  1. Como de costume, muito bom. Mas acredito que o nome seja Lavalleja. Há um aspecto mítico nesta história. Alás, os 33, dizem as boas e más línguas, vieram da Loja Maçonica que Juan Antônio era membro. Alás, suspeito que a instituição também tem papel na criação da UFSM, mas o assunto é tabu e os envolvidos não são conhecidos pela loquacidade sobre o assunto.

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