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General Zeca Netto, um gaúcho de fina estampa – Por Ricardo Ritzel

E ainda uma lenda viva das batalhas travadas durante mais de cinco décadas

O general de guerra, Zeca Netto, foi um dos mais temidos comandantes revolucionários maragatos, em 1923

Campanha gaúcha – dezembro de 1926.

Com o fracasso da revolta tenentista de novembro, o general de guerra José Antônio Netto, mais conhecido como general Zeca Netto, toma mais uma vez o rumo do exílio.

Só que desta vez, como todo bom guerrilheiro sulino, com uma inusitada estratégia para chegar à fronteira do Uruguai, embora bastante temerária para um septuagenário que tinha, literalmente, a cabeça a prêmio. Iria sozinho e ainda fazendo uma longa e improvável volta, percorrendo atalhos e caminhos só conhecidos por experimentados tropeiros. Sempre em terras amigas durante o dia e em território legalista pela noite.

Depois de alguns dias de cavalgada, chega a um bem cuidado rancho de campanha montado em seu tordilho preferido com o toso amarrado a cogotilho. Chegando frente ao portão, chama pelos proprietários, como o costume da época:

-“Ô de casa….ô de casa!”

Logo se viu cercado por uma cachorrada desconfiada e, em seguida, por uma criançada alegre, já bastante curiosas em saber quem era aquela estranha figura com longa barba branca, cabelos desregrados e roupas completamente empoeiradas. Tanto ele, como a montaria, estavam totalmente suados, embora não demonstrassem nenhum cansaço.

– “Apeie-se, senhor. Em que posso servi-lo?”, responde uma senhora de meia-idade, já enxugando as mãos no avental.

– “Um copo de água fresca, se não for incômodo…”

– “Gurizada, tragam uma cadeira para este senhor, e parem agora com esse alarido”, ordena a dona da casa.

Assim, uma travessa de prata com um copo e uma jarra de límpida água do poço é oferecida ao viajante, que, tão logo sacia a sua sede, percebe que sua anfitriã também busca satisfazer sua curiosidade, lhe questionando educadamente.

– “Seu cavalo está bastante suado…vem de longe?”

– “Já há dois meses estou dormindo nos arreios.”, despista o general rebelde.

– Mas o senhor, parece, não é tão moço para essa tarefa. Embora se note que não demonstre cansaço. Nem o senhor, nem seu cavalo.”

-“São as circunstâncias da vida, senhora. Já estou acostumado a palmilhar o Rio Grande, e eu e ele nos conhecemos bem.”

E assim a conversa se prolongou, entrecortada pela algazarra dos pequenos e dos cachorros, até que em um determinado momento, perdendo a calma, a senhora repreendeu com severidade os meninos:

– “Se não pararem já com este alarido, eu mando chamar o Zeca Netto. Aí vocês vão ver…”

A ameaça foi assimilada na mesma hora pela gurizada que, imediatamente, se pôs em silencio e ordeira.

 “Senhora, com todo o respeito, por que assusta as crianças com meu nome?

– “O senhor é o general Zeca Netto? Não acredito. O senhor está de brincadeira comigo. Não pode ser….tão distinto, tão cortês e educado. Não pode ser o malfeitor grosseiro que anda por aí em armas praticando atrocidades!”, retrucou de imediato a dona da casa.

Perplexo, Netto não quis e nem tentou consertar a impressão de sua anfitriã, deixando a revelação de sua verdadeira identidade como fosse a brincadeira que ela acreditou ser.

Pois, naquele exato instante, ele também viu com clareza que seu tempo de revolução havia passado e não voltaria. A luta que havia apreendido com seus antepassados e usou com maestria pelos campos do Rio Grande do Sul nas revoluções de 1893 e 1923, não existia mais.

A outrora gloriosa cavalaria rio-grandense e sua clássica carga de lanceiros, as épicas refregas corpo a corpo com arma branca e as rápidas movimentações das montoneras que deixavam os inimigos completamente desorientados foram superadas pelos novos tempos, pela tecnologia. E muito. Não havia mais a mínima chance de vitória!

Ele já havia visto, em 1923, uma ou duas metralhadoras imobilizarem completamente um regimento de cavalaria revolucionária. Também presenciou, em várias ocasiões, uma mesma tropa inimiga dar aguerrido combate a sua gente e, logo depois, com a informação instantânea e segura do telégrafo, se deslocarem com extrema rapidez pela malha ferroviária para os esperarem mais adiante com cavalhada descansada e munição reposta.

Uma enorme e decisiva diferença que, naquele ano de 1926, tinha se tornado ainda maior com a utilização da aviação militar. Não havia mais o elemento surpresa das lutas sulinas. O governo sabia com exatidão o número de integrantes de uma coluna rebelde, o armamento que utilizavam, o exato local onde estavam e que rumo estava seguindo.

E agora também, via seu nome como alvo das calúnias legalistas espalhadas por todo estado pela imprensa castilhista. Assassino, violador, degolador, bandido e ladrão eram os adjetivos usados para defini-lo, entre outras maledicências. Ele já vira está mesma campanha difamatória contra seus inimigos de 93.

Foi neste exato momento também que Zeca Netto fez uma retrospectiva de sua vida, suas escolhas, seus erros e acertos, suas vitórias e derrotas.

José Antônio Netto e seu Estado-Maior fotografados pouco antes da revolução de 1923, na Estância da Chácara, em Camaquã

José Antônio Netto nasceu no dia 24 de junho de 1854 na Estância da família em Jaguarão-Chico. Seu pai foi Florisbelo de Sousa Netto (irmão do lendário general farroupilha) e sua mãe era Raphaela de Mattos Netto. Os dois de tradicionais e abastadas famílias rio-grandenses com vastas terras no Brasil e Uruguai.

Cresceu com a melhor educação possível para seu tempo e espaço. Formou ainda jovem uma vasta biblioteca. Foi um leitor voraz durante toda sua vida. Dominava três idiomas sem nenhum sotaque. Tinha um feitio aristocrático, mesmo vestindo bombachas e roupas de couro, típicas do dia a dia de trabalho nas estâncias gaúchas.

Em 1872, aderiu em primeira hora ao positivismo republicano, bem antes da queda da monarquia. Quando Júlio de Castilhos assume o a presidência do Rio Grande do Sul, em 1891, passa a exercer importantes cargos públicos na condição de chefe do Partido Republicano Camaquense.

Na Revolução Federalista de 1893, defendeu a causa governista como tenente-coronel e ganhou a fama de hábil cavaleiro, guerreiro implacável e ardiloso comandante com alto senso de estratégia e tática. Conhecia como poucos todos os caminhos e atalhos do interior gaúcho e os usou a seu favor.

Já em 1923, inconformado com as discriminações com a zona rural (Campanha e Missões) e a falta de investimentos para as atividades pastoris, Netto rompe com presidente do Estado, Antônio Augusto Borges de Medeiros e adere ao movimento maragato. Torna-se um dos mais temidos comandantes revolucionários.

Rapidamente monta uma coluna de combate que passou a se chamar de 4ª Divisão do Exército Libertador. Pouco tempo depois, ela já era famosa pela sua rapidez de movimentos que supria, em partes, a deficiência de material bélico. Lutava quando queria e lhe era apropriado. Afastava-se com a mesma rapidez e dissimulação quando o inimigo tinha ampla vantagem humana e de armamento.

Na campanha de 1923, sofreu apenas uma derrota para Hipólito Ribeiro, que conseguiu imobiliza-lo em Gangussú Velho, onde amargou a perda de muitos praças e oficiais.

Mas logo se recompõe e consegue tomar a cidade de Pedras Brancas (atual Guaíba), quando causa um verdadeiro pânico em Porto Alegre com o surgimento de boatos de uma iminente invasão da capital gaúcha. Algo como “Aníbal está às portas de Roma”, como foi descrito por alguns historiadores e pelos relatos de jornais da época.

Porém, Netto não queria tomar Porto Alegre. Nem tinha recursos humanos e bélicos para enfrentar uma praça tão bem protegida. Mas que foi uma vitória da propaganda rebelde, isto foi. E das grandes.

Assim como também foi o seu maior feito militar na refrega de 23, que aconteceu em uma segunda-feira, dia 29 de outubro, quando o general e sua coluna, de surpresa, invadem e tomam por seis horas o controle da cidade de Pelotas, a segunda maior do Rio Grande do Sul.

Foi aclamado e ovacionado pela população daquela cidade, enquanto seus inimigos borgistas e os soldados encarregados de defender o povoamento ficaram escondidos em quartéis ou nos porões de suas residências.

A façanha foi decisiva para o governo de Borges de Medeiros abrir negociações de paz com os maragatos e, depois, assinarem o Tratado de Paz de Pedras Altas.

Feita a pacificação, Zeca Netto volta as suas atividades de fazendeiro, dedicando-se também ao aliciamento eleitoral para engrossar ainda mais a oposição ao velho Borges.

Sua fama logo após a revolução de 1923 era tamanha que inspirou poetas e foi cantada em quase todos os galpões do Rio Grande do Sul.

“Lá de trás daquele cerro

passa boi, passa boiada!

Também passa o Zeca Netto

no seu cavalo tordilho

com o toso a cogotilho

repontando a chimangada”

Uma façanha bélica: Zeca Netto invade Pelotas e força o governo de Borges de Medeiros a negociar a paz com os rebeldes maragatos

Mas com a eclosão de uma nova revolta em solo gaúcho, em 1926, ele não conteve o velho espírito revolucionário e se alia ao marechal Isidoro e aos tenentes do Exército que queriam depor Arthur Bernardes da presidência brasileira.

Só que desta vez, o velho general de guerra, já com 75 anos de idade, não iria lutar junto com seus tradicionais companheiros de 93 e 23 que naqueles dias já estavam mortos ou velhos demais para mais uma aventura revolucionária de tamanha mobilidade.

Com sério déficit humano, Netto aceita em sua coluna qualquer um que demonstre desejo de lutar, sejam eles gaúchos errantes daqui ou do Uruguai. E isto foi fatal para sua luta como para a moral de sua tropa.

Assim como foi também vai para sua conta uma série de atrocidades cometidas por sua coluna, mesmo ele não estando presente em nenhuma delas, nem consentidos com tais atos, como a degola do delegado de polícia de São Sepé, feita por um tal de João Castelhano, de tenebrosa memória, como definiu o historiador Arthur Ferreira Filho em seu clássico livro, “Revoluções e Caudilhos”.

Desiludido, cansado e derrotado, o velho general de guerra retorna ao Uruguai, onde amargou quatro anos de exílio. Tempo que suas propriedades em solo gaúcho foram roubadas, depredadas e completamente destruídas pela soldadesca legalista ou por simples ladrões que aproveitaram seu abandono.

Só voltou ao Brasil depois de uma mensagem de Osvaldo Aranha que o comunicava de sua anistia e pedia seu apoio à Revolução de 1930 que queria derrubar o presidente Washington Luís.

O velho general não pensou duas vezes e se uniu aos revoltosos, assim como manteve seu apoio à ditadura Vargas durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Sempre filiado ao partido criado e liderado por outra lenda gaúcha, o general José Antônio Flores da Cunha, então governador do Rio Grande do Sul, com quem tinha uma relação de amizade sincera e mútua admiração.

Porém, com o golpe que implantou o Estado-Novo em 1937, extinguindo os partidos políticos, proibindo qualquer atividade partidária e ainda determinando a deposição e o exílio de Flores da Cunha, Netto, completamente desgostoso, afastou-se para sempre da vida pública.

Viveu muito ainda. Conta a lenda que, com mais de 90 anos e ainda forte e lúcido, praticava diariamente o tiro ao alvo.

– “Ninguém sabe o dia de amanhã”, dizia com convicção aos que demonstravam estranheza em seu hábito. E continuava atirando, para não perder a destreza que sempre teve.

E foi assim, de repente, que a morte chegou. Eram exatamente sete horas da manhã do dia 22 de maio de 1948, quando o general de guerra, Zeca Netto, deu seu último suspiro e morreu de causas naturais aos noventa e quatro anos de idade na sede da famosa Estância da Chácara.

Ele foi sepultado no cemitério São João Batista, de Camaquã, onde repousa até hoje no mausoléu que mandara fazer em memória de sua filha, Anna Theotonia, que para seu supremo desgosto, falecera alguns anos antes.

Deixou também vasta linhagem fruto de dois casamentos. Todos seus filhos e netos o consideravam um pai exemplar e um avô amoroso e presente. Deixou também um manuscrito onde narra com detalhes seu envolvimento nas revoluções de 1893 e 1923. Tempos depois, este relato escrito à mão pelo velho general foi transformado em um livro revisado e organizado pelo historiador Sérgio da Costa Franco: “Memórias do general Zeca Netto”.

O “causo” da senhora que o recebeu no início deste texto foi contado pelo próprio general aos seus filhos e netos durante um dos tradicionais e quase que obrigatórios jantares com sua família. Ele foi publicado na apresentação do livro de memórias pelo seu filho, Rui Castro Netto.

(*) Ricardo Ritzel é jornalista e cineasta. Apaixonado pela história gaúcha é roteirista e diretor do curta-metragem “Gumersindo Saraiva – A última Batalha”. Também é diretor de duas outras obras audiovisuais históricas: “5665 – Destino Phillipson”, e “Bozzano – Tempos de Guerrra”. Ricardo Ritzel escreve neste site aos sábados.

Observação do Editor: as fotos que ilustram este texto são reproduções do acervo pessoal e da biblioteca do autor.

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2 Comentários

  1. A verdade é que as terras de Brizola no Uruguai eram herança da esposa. As terras do banhado, onde fez reforma agrária, foram desapropriadas pelo governo do estado de terceiros!

  2. Muito bom, como costume. Cabe lembrar que o Uruguay era província brasileira até 1825, andou ligado com a Argentina e ficou independente em 1828. Dizem que Brizola tinha um sitio por lá, cousa pouca, dois mil hectares. Aqui no Brasil fez reforma agraria nas próprias terras, um canto de campo cheio de banhados. E o que dizem as mas línguas.

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