Decifra-me ou devora-me – Por Bianca Zasso
Sobre ‘Devorar’, de Carlo Mirabella-Davis, exibido na Mostra Internacional de SP
Uma experiência que permite muitos caminhos ou uma história hermética, sem possibilidade de dúvida? Parece a descrição de mais uma encruzilhada da vida, mas é um dos muitos pensamentos que tomam conta do espectador após assistir Devorar (Swallow). O longa de Carlo Mirabella-Davis, exibido na edição de 2019 da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e agora disponível na plataforma streaming Mubi, pode parecer estranho e confuso ao longo de seus pouco mais de 90 minutos de duração. Pelo menos para quem nunca sentiu seu corpo e suas atitudes serem julgados, seja de forma explícita ou velada.
Hunter, a protagonista interpretada com precisão por Haley Bennett, vai morar em uma casa incrível, com enormes janelas envidraçadas, junto com o marido. Enquanto ele vivencia um crescente na carreira profissional ao assumir a empresa da família, ela passa os dias entre afazeres domésticos e um certo tédio elegante. Uma sinopse assim pode indicar um drama sobre a condição feminina e sua possível jornada de redenção. E Devorar é isso também, mas não se encerra nessa proposta. A precisa direção de arte e fotografia, assinadas, respectivamente, por Erin Magill e Katelin Arizmendi, possui uma atmosfera ora fantástica, ora remetendo aos anos 50 estadunidenses e suas donas de casa perfeitas. Hunter tem ares de loira fria de Hitchcock nos primeiros momentos do filme, com figurinos que lembram Kim Novak , em Um corpo que cai, e Grace Kelly, em Janela Indiscreta. Mas as influências visuais de Devorar não ficam só no mestre do suspense. Há uma pitada de David Cronenberg no centro do conflito do roteiro: com a solidão diária dentro de casa, Hunter passa a engolir objetos. Seu desejo por essa experiência causa aflição e encantamento no espectador, já que é natural que se espere uma resposta para o desenvolvimento de tal obsessão. E é o modo como essa resposta se apresenta ao público que faz o longa ser a potência insólita que é.
Haley Bennett é uma atriz com os traços desenhados para a personagem, além de um talento para conquistar a câmera a seu favor. Delicada e jovem, cria a máscara perfeita para seu interior conflituoso. A cena da endoscopia, que pode parecer de mau-gosto para muitos, é simbólica: “entramos” em Hunter. Seus órgãos e fluidos estampados na tela. Ela esconde algo. Todos escondemos. É no ato de engolir de bolinhas de gude a pregos que ela tenta se fazer notar, chamar a atenção para o que ninguém vê (ou não quer ver) sobre quem ela é.
Os sogros opressores e o marido mais preocupado com a gravata que não combina com a camisa são o detalhe. A câmera que acompanha Hunter pelos cômodos bem decorados de sua casa de vidro está sempre à espreita. A mulher que está ali parece ser algo, mas na verdade é outra coisa. Confuso? Sim, e é aí que mora a graça da última parte do longa.
Um filme de terror com um drama intenso como pano de fundo. Definição que ficaria bem na capa do DVD, mas que é pouco para o trabalho de Mirabella-Davis. Mulheres com o mínimo de conhecimento sobre a força do machismo em seus corpos e mentes irão perceber que há uma grande metáfora diante de nós após os créditos finais. Os traumas de Hunter parecem clichê num primeiro olhar, mas logo se mostram compostos de sutilezas e apresentados com primor visual. Óbvio que a ótima atuação de Bennett colabora para o resultado final, mas as cenas mais simples são dotadas de significados fortes, daqueles que parecem levar dias para serem digeridos. Engolimos em seco. Hunter nos deixa sem palavras com suas atitudes para, no fim, nos conquistar por inteiro.
Cotado para a estranha temporada de premiações que começa em breve no Hemisfério Norte, Devorar merece a atenção do público mesmo em um formato que diminui muito seu poder. Uma tela grande é muitas vezes o elemento mais importante para que uma história funcione. Mas em tempos pandêmicos, adaptar-se é preciso. E nós, brasileiros, estamos em um momento de engolir muitas coisas cortantes, assim como Hunter. Que a arte, mais que nos salvar, nos coloque a pensar sobre tantas nuvens escuras que nos rondam.
Devorar (Swallow)
Ano: 2019
Direção: Carlo Mirabella-Davis
Disponível na plataforma Mubi
(*) Bianca Zasso, nascida em 1987, em Santa Maria, é jornalista e especialista em cinema pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Cinéfila desde a infância, começou a atuar na pesquisa em 2009. Suas opiniões e críticas exclusivas estão disponíveis às quintas-feiras.
Observação do Editor: as fotos que ilustram esse texto são de Divulgação.
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