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Santa Maria aniversariante: violenta, religiosa e lendária – por Vitor Biasoli

O significado de João Daudt Filho, Caetano Pagliuca e João Cezimbra Jacques

Uma cidade comporta variadas camadas. E uma cidade como Santa Maria, com 163 anos de história (contada a partir da sua transformação em município, em 1858) e mais de 280 mil habitantes, abarca uma diversidade difícil de dar conta.

Nas suas camadas mais antigas, um povoado do final do século XVIII, construído no limite entre dois impérios coloniais. Um povoamento que esteve próximo a cenários de guerras de fronteiras, conflitos com estados platinos e, mais tarde, envolvido em guerras civis (como as revoluções Farroupilha e Federalista). Uma cidade com sua matriz no mundo oligárquico (aquele em que dominavam os grandes proprietários de terra), no qual a violência não era excepcional.

Um povoado que se estruturou como polo comercial regional, transformou-se em município autônomo e abrigou o entroncamento de uma rede ferroviária. Nesse processo, foi cenário de disputas políticas (violentas, muitas vezes) e também religiosas (nos períodos da Colônia e Império, a Igreja Católica representava a religião oficial e não aceitava as demais). Por conta da localização geográfica e da ferrovia, o município atraiu inúmeras guarnições militares e instituições educacionais.

Para dar conta de algumas dessas diferentes camadas, no final do século XIX e início do XX, lembro aqui as biografias de alguns de seus habitantes, capazes de desvendar aspectos da vida social santa-mariense. Estou me referindo às trajetórias de um farmacêutico (João Daudt Filho), um padre palotino (Caetano Pagliuca) e um militar literato (João Cezimbra Jacques). Os três com atuações em diferentes setores e, por isso mesmo, capazes de revelar aspectos da realidade política, religiosa e literária locais.

O farmacêutico João Daudt Filho enfrentou um caso de violência típico dos tempos oligárquicos – o assassinato político do cunhado, em 1890 (na atual Rua do Acampamento) – e seu empenho em resolver o caso é uma espécie de raio X da época. O mandante do crime era Martin Hoehr, líder político bem relacionado com o partido dominante (PRR), e não era fácil alcançá-lo. Para conseguir êxito, o farmacêutico mergulhou no jogo político da época, entendeu-se com um dos adversários de Martin Hoehr durante a Revolução Federalista… e este o executou.

No mesmo período, no campo religioso, o padre Caetano Pagliuca foi designado pároco local, em 1900, ficando no governo da paróquia até 1937. Consciente das dificuldades da Igreja (como a resistência por parte dos liberais-maçons e a inexistência de um templo adequado), padre Caetano se empenhou para reestruturar o poder católico na cidade. Para isto, liderou uma mobilização para a construção da Catedral (inaugurada em 1910), estabelecendo alianças até com os maçons adversários. Sua ação em relação à Irmandade do Rosário (destituindo a sua diretoria e incorporando seu patrimônio à paróquia) foi também significativa de sua prática política, que possibilitou a reformulação das relações entre a Igreja e a sociedade local, e também a criação do bispado.

Por outro lado, no campo literário, o major Cezimbra Jacques (nascido em Santa Maria, mas vivendo boa parte de sua trajetória em P. Alegre e Rio de Janeiro) debruçou-se sobre a cultura gaúcha e pensou a formação da cidade. No seu esforço de estabelecer um mito primordial para Santa Maria, publicou um conto intitulado “A lenda de Imembuí”, em 1912, no qual imaginou um casamento apaixonado entre uma índia (Imembuí) e um branco conquistador (Rodrigo, depois denominado Morotin), que deu a uma prole que auxiliou no povoamento local. Uma bela trama ficcional que um historiador “criativo” (João Belém) transformou em lenda no seu livro História do Município de Santa Maria, em 1933. A lenda na qual os santa-marienses se reconhecem, se acreditando originários de um idílio entre os primitivos habitantes e os conquistadores luso-brasileiros.

Três trajetórias de santa-marienses (pe. Caetano nasceu na Itália, mas radicou-se na cidade) que acredito importante de serem lembradas, quando se comemora o aniversário da cidade. Três biografia que iluminam diferentes camadas da nossa história: a matriz oligárquica, autoritária e violenta; a religiosidade católica, construída também de forma rigorosa; e a vida intelectual, feita de criações originais, apropriações “criativas” e identidades reinventadas. Várias camadas formando esse bolo chamado Santa Maria, que muitos de nós se sentem desafiados a decifrar.

Vitor Biasoli é Escritor e professor aposentado do departamento de História – UFSM e o texto acima foi publicado originalmente no site da Seção Sindical dos Docentes da UFSM (Sedufsm): AQUI .

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Um Comentário

  1. Mundo oligárquico que talvez não tenha acabado. Aparentemente por aqui as moscas não mudam. Gente que ocupa cargos, tem relações de amizade, representantes na administração, etc. Ou soltam o chavão ‘fulano foi eleito agora é alcaide de todos, devemos colaborar’. Para alguém deve estar dando certo.

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