Versão governamental das 500 mil mortes e a história que mortos nos contam – por Carlos Wagner
“São três os fatos que contribuíram em definitivo para a morte pela Covid“
Por estar na maioria das vezes envolvido em reportagens complexas que exigiam cruzamento de informações e com outras dificuldades para montar um texto simples, elegante e preciso, sempre que eu ficava enrolado com uma matéria dava uma conversada com os colegas repórteres que faziam a cobertura policial.
Por quê? Considero a reportagem policial uma das melhores escolas para lapidar jornalistas. A apuração da matéria acontece em um ambiente em que todos têm a sua versão sobre um crime: o delegado, o suspeito, os advogados e até o corpo da vítima, porque a autópsia pode revelar como tudo aconteceu. No final, o repórter policial ouve todas as versões, cruza as informações e conta uma história.
Eu assisti com os olhos de repórter de polícia à sessão da última terça-feira (22/06) da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid-19, a CPI da Covid, quando prestou depoimento o deputado federal gaúcho e médico Osmar Terra (MDB), 71 anos. Os senadores queriam saber se Terra era a pessoa que articulava o “gabinete paralelo” que orienta sobre a pandemia o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido).
Terra negou que fosse “orientador do presidente” no caso da pandemia e afirmou não existir o “gabinete paralelo”. Descreveu suas conversas com Bolsonaro como simples troca de informações, sem maiores consequências. Mas durante todo o seu longo depoimento ele se manteve fiel ao roteiro da versão do governo federal para os 500 mil mortos pela Covid.
A estrutura narrativa do governo tem três pilares: o primeiro é que o poder de administrar a crise foi retirado de Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e dado aos governadores e prefeitos. O segundo é que o isolamento social não funciona e detonou a economia. E o terceiro é que o tratamento preventivo contra a Covid, usando drogas como cloroquina, salva vidas.
Conheço Terra desde o final dos anos 80, quando ele começou a sua carreira política em Santa Rosa, uma cidade agroindustrial no interior do Rio Grande do Sul. Ele tem um currículo respeitado pela esquerda, pelo centro e pela direita na saúde pública. Por que tornou-se defensor do negacionismo de Bolsonaro em relação ao poder de contágio e letalidade do vírus? Isso é problema dele e dos seus eleitores.
O nosso, de jornalistas, é advertir o nosso leitor que Terra está usando todo o seu conhecimento para reforçar a versão do governo sobre a pandemia. Fez isso com maestria na CPI. Mostrando gráficos e citando estudos sobre medicações. Lapidou a versão do governo. Os senadores da CPI da Covid já têm informações suficientes para delinear o contorno do que aconteceu. Aqui chegamos ao cerne da nossa conversa. Sem ter que transformar cada matéria em uma longa e repetitiva história, como nós repórteres podemos desatar esse nó?
Aqui entra a objetividade do repórter de polícia. Os jornalistas têm que deixar claro para os seus leitores que estão contando a história revelada pela autópsia dos 500 mil brasileiros mortos. O que facilitou a ação da Covid nos seus organismos que os levou a óbito? Lendo o que publicamos, podemos resumir em três os fatos que contribuíram em definitivo para a morte pela Covid.
O primeiro é o mais escandaloso. Dezenas de pacientes morreram nos hospitais de Manaus (AM) e no interior do Pará por falta de oxigênio hospitalar. O segundo fato: logo nos primeiros meses do ano, os sistemas públicos e privado de saúde em 25 dos 27 estados colapsaram. Sem vagas nas UTIs, centenas de pessoas morreram em casa ou em cadeiras nos corredores dos hospitais. E, por último, o atraso na compra das vacinas, que resultou no atual sistema de conta-gotas de imunização da população.
Esses três fatos têm as digitais do governo Bolsonaro. A cada dia, em média, morrem 2 mil brasileiros pela Covid. A hora de discutir a versão do governo sobre os fatos já passou.
A discussão sobre a eficiência da cloroquina e do isolamento social já acabou. A cloroquina não funciona e o isolamento social é a única maneira que temos de evitar o alastramento do vírus. A hora é a da vacina, que vem a passos de tartaruga enquanto a Covid-19 vem a galope.
Tenho estado atento aos conteúdos que estamos publicando nos jornais (papel e sites), noticiários de rádio e TV e outras plataformas de comunicação sobre as versões do governo sobre os 500 mil mortos. O que tenho visto é que os noticiários estão ficando mais objetivos e deixando de lado as versões do governo. Por quê? Existe um fato maior. Já são 500 mil mortos e 2 mil pessoas continuam morrendo diariamente de Covid.
Arrematando a conversa. Eu gostaria de chamar a atenção dos meus colegas que trabalham nas redações dos jornais, rádios, TVs e outras plataformas de comunicação no interior do Brasil. Como o governo federal montou essa lambança que é o combate a pandemia está sendo investigada pela CPI da Covid.
O que interessa ao nosso leitor? É quando ele tomará a vacina. E como ele sobreviverá até lá. Como diz o ex-ministro da Saúde e general-de-divisão da ativa do Exército Eduardo Pazuello: “É simples assim”.
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(*) O texto acima, reproduzido com autorização do autor, foi publicado originalmente no blog “Histórias Mal Contadas”, do jornalista Carlos Wagner.
SOBRE O AUTOR: Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela UFRGS. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.
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