Quantos hoje estão passando fome perto de nós? – Por Valdeci Oliveira
No RS, “975,2 mil domicílios sofrem com algum tipo de insegurança alimentar”
Reconhecido mundialmente como um dos mais amplos programas sociais instituídos como política de Estado de combate à fome e à pobreza, o Fome Zero chega à sua maioridade neste 2021. Foram necessários 11 anos para o Brasil sair do Mapa da Fome, uma peça gráfica criada pela ONU, no início dos anos 2000, para mostrar, conforme o tom das cores, os países com parcela de 5% ou mais da sua população carentes de alimento.
O Brasil abandonou esse cenário em 2014, durante o governo da presidenta Dilma Rousseff. Mas voltou novamente esse ano. Calcula-se que, em 2020, mais de 100 milhões de brasileiras e brasileiros – crianças, jovens, adultos e idosos – passaram por algum tipo de restrição alimentar. Esse dado só não é maior porque o governo federal se viu obrigado, por pressão da sociedade, pelas articulações dos partidos de oposição ou por determinações do Supremo Tribunal (STF), a não somente continuar atendendo esse imenso segmento de destituídos – via auxílio emergencial, Bolsa Família e outras ações – como ampliá-lo, mesmo que por um período curto.
Deixar para trás essa chaga nacional foi possível porque quem tinha a caneta na mão, lá em 2003, entendia que, por trás daquele Brasil de sol e de carnaval, existia um mar de gente que não comia o que necessitava. Sob os olhos de todos, milhões de bocas que não dispunham de condições para suprir o mínimo de calorias diárias necessárias para manter seus corpos de pé. A eles era dado apenas o direito de receber, de vez em quando, alguma cesta básica das mãos de um dirigente político local que, em troca, exigia o seu voto e obediência.
A conquista de fazer pelo menos três refeições diárias foi fruto de um acúmulo de lutas anteriores. Impossível não recordar de Herbert de Souza, o Betinho, e sua “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”. Isso foi em 1993, quando o país registrava o vergonhoso índice de ter cerca de 32% da sua população considerada indigente. A criação na mesma época do suprapartidário Conselho de Segurança Alimentar (Consea) pelo ex-presidente Itamar Franco, a partir de uma proposição do Partido dos Trabalhadores, também foi uma das peças desse quebra-cabeça, que, montado, possibilitou, na década seguinte, a articulação de políticas inclusivas, a formação de uma espécie de SUS de segurança alimentar, que abrangia vários programas – de hortas comunitárias e transferência de renda passando por maior acesso a serviços públicos e qualificação profissional. Na lista de protagonistas da luta contra a fome, nomes como Josué de Castro, dom Hélder Câmara, dom Mauro Morelli e, bem perto de nós, dom Ivo Lorscheiter e a Irmã Lourdes Dill (e toda sua equipe) também precisam ser lembrados.
Mas a vida é feita de altos e baixos, e as escolhas políticas apontam isso. Segundo consta no inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar, 116,8 milhões de brasileiros não tinham acesso permanente a alimentos. Desses, 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) e 19,1 milhões (9% da população) estavam passando fome (insegurança alimentar grave). A fome retornou aos patamares de 2004, sendo que de 2018 a 2020, como mostra a pesquisa VigiSAN, ela teve um aumento de 27,6%. Em janeiro do ano passado, antes da pandemia, a lista de espera para ingresso no Bolsa Família era de 4 milhões de famílias vulneráveis.
Aqui no estado, a situação não é diferente. Se tirarmos os óculos escuros do fundamentalismo político que nos impedem de ver a realidade como ela é, enxergaremos um quadro que aponta que 975,2 mil domicílios sofrem com algum tipo de insegurança alimentar, absurdo que havia sido reduzido em 36% entre 2004 e 2013. Em 2018, o cenário já era completamente diferente, tendo agravado e registrado um aumento de 47,8%. E, desde então, não experimentamos nenhuma melhora que aponte outra conjuntura diferente desta da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de análise da segurança alimentar no Brasil feita pelo IBGE. Por aqui, aprova-se projeto de aumento no uso de agrotóxico nas lavouras gaúchas, enquanto o que busca estabelecer uma política de renda emergencial digna desse nome tramita há mais de um ano e não vai à votação no parlamento estadual.
No ano em que o Fome Zero completa sua maioridade, assisto o que se tornou o nosso país. Assisto discursos cínicos que evocam em vão o nome de Deus, mas que, na prática, resultam em não políticas para a maioria do nosso povo. No ano em que o Fome Zero completa sua maioridade, me vem à mente uma frase dita por cara barbudo, então considerado por muita gente como um simples e iletrado ex-operário, na solenidade de sua posse como presidente do Brasil, em janeiro de 2003: “Enquanto houver um irmão brasileiro ou uma irmã brasileira sofrendo com a fome, teremos motivos de sobra para nos cobrir de vergonha”.
(*) Valdeci Oliveira, que escreve sempre as sextas-feiras, é deputado estadual pelo PT e foi vereador, deputado federal e prefeito de Santa Maria. Também é 1º Secretário da Mesa Diretora da Assembleia Legislativa e Coordenador da Frente Parlamentar em Defesa da Duplicação da RSC-287.
Nota do Editor. A foto das crianças com fome, no alto deste artigo, é de Lula Marques.
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